QUEM É A POMBAGIRA?
Por Hendrix Silveira*
Pombagira: origem, sincretismo e arquétipo feminino
O termo Pombagira – também grafado como Pomba Gira, Pomba-Gira ou Pombogira – é resultado de uma corruptela de Mpambu Njila (ou Nzila), divindade dos caminhos do povo Bakongo, de Angola e do Congo. Trata-se de uma entidade masculina que chegou ao Brasil durante o período da escravidão e foi preservada nos Candomblés de nação Angola/Congo, sobretudo na região do Rio de Janeiro.
No contexto da escravidão, a Igreja Católica incentivou o sincretismo entre divindades africanas e santos católicos como estratégia de conversão, repetindo um método já utilizado na Europa medieval. No entanto, o que de fato ocorreu foi um hibridismo cultural (BHABHA, 2013): os santos católicos se associaram aos Orixás, criando novas formas de religiosidade. Com o surgimento da Umbanda no início do século XX, esse hibridismo permaneceu, mas trouxe consigo novos desafios.O primeiro deles foi a figura de Exu. No culto yorubá, Exu é fundamental, mas, por suas características peculiares, acabou associado ao diabo cristão. Essa visão encontrou pouca resistência nas tradições de matriz africana como o Batuque e o Candomblé, pois nelas não existe uma teologia maniqueísta: o bem e o mal são forças presentes em tudo e em todos, inclusive nos próprios Orixás. Já a Umbanda, fortemente influenciada pelo cristianismo e pelo espiritismo kardecista, reinterpretou a lógica, atribuindo santidade aos Orixás (a partir dos santos católicos) e relegando ao Exu os aspectos considerados “menos santos”.
A iyalorixá e pesquisadora Sandra Epega (falecida) sintetizou bem essa lógica:
Uma vez que Xangô é sincretizado com São Jerônimo, ele tem que assumir, para o devoto, a santidade de São Jerônimo. Só que Xangô é o raio, é o trovão, é o fogo e foi dado a ele também a Justiça, foi dado a ele também as pedras [...]. Mas ele tem também um lado humano: era um homem com muitas mulheres, era um guerreiro, era um conquistador... E esse lado humano o que é? Esse lado humano é Exu!” (DANÇA, 2006).
Nesse contexto, a religiosidade brasileira, marcada por um cristianocentrismo (SILVEIRA, 2020), passou a dividir os Orixás em duas dimensões: a santidade, associada aos santos, e a humanidade, projetada nos Exus.
De Iansã à Pombagira
Um exemplo claro é Iansã, divindade yorubá ligada à paixão, à força dos ventos e à sedução, associada no sincretismo a Santa Bárbara. Assim, seus atributos divinos se mesclaram à santidade da santa católica. Mas Iansã também carrega um lado humano: guerreira, mãe e mulher independente, com múltiplos casamentos. Até a revolução cultural dos anos 1960/70, uma mulher nessas condições seria tachada de “puta” pela moral cristã. Esse lado “reprovado” da feminilidade acabou sendo projetado na figura de um Exu-Mulher.
É nesse cenário que surgem as corruptelas fonéticas: Mpambu Njila transformou-se em Pombagira. E, pelo fato de a palavra terminar em “a”, passou a ser entendida como feminina – consolidando a ideia de um Exu-Mulher.
O escritor Aluízio Fontenelle, em seu livro Exu (1951), foi um dos primeiros a popularizar a palavra “Pombagira”, ajudando a fixar o termo no imaginário umbandista. Na época, Pombagira era uma entidade única dentro de um panteão que incluía Exu Tranca Ruas, Exu Caveira, Exu Mirim, Exu Mangueira e Exu Gira-Mundo. Só mais tarde surgiram nomes como Maria Padilha, Sete Saias, Dama da Noite e da Praia.
O arquétipo da mulher independente
Hoje, Pombagira pode ser compreendida como um arquétipo da mulher livre: aquela que assume seus desejos, não sente vergonha de ter múltiplos amores e reivindica o prazer como parte de sua existência. Trata-se de uma imagem feminina que desafia a moral cristã, mas que, ao mesmo tempo, expressa um poderoso símbolo de empoderamento.
Assim, da corruptela de um nome bakongo nasceu, no Brasil, uma entidade que representa resistência cultural, reinvenção espiritual e afirmação da liberdade feminina.
* Babalorixá e Afroteólogo.
Referências
DANÇA das cabaças: Exu no Brasil. Dir. Kiko Dinuchi. 2006.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves.
FONTENELLE, Aluízio. Exu. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Aurora, 1954.
SILVEIRA, Hendrix. Não somos filhos sem pais: história e teologia do Batuque do Rio Grande do Sul. São Paulo, SP: Arole Cultural, 2020.
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