BELZEBU É UM EXU?

Por Hendrix Silveira*


A polêmica atual é sobre uma sacerdotisa da quimbanda que colocou uma imagem de Belzebu no alto do muro de seu templo, causando estranheza na vizinhança a ponto de aparecer em telejornais do Brasil todo.

Isso incomodou muita gente. Os cristãos repreendem por acreditar que se trata do próprio diabo. Os  afrorreligiosos repreendem por entender que essa exposição reforça a imagem negativa e satânica que a sociedade branca e cristianocentrada já tem sobre as tradições de matriz africana  Creio que este episódio mereça uma análise mais profunda.

Primeiro precisamos entender a história por trás dessa imagem e quem ela realmente representa. Essa imagem é a representação de Baphomet e não de Belzebu. Não está bem claro quem é Baphomet, se uma divindade de povos antigos, um demônio ou apenas uma representação simbólica de uma ideia, como um hieróglifo egípcio.

Aparentemente, ele figurava como uma símbolo em rituais maçônicos. A maçonaria é uma sociedade masculina de segredos mantida por artífices, construtores e ourives da Idade Moderna, mas cuja origem remonta aos Cavaleiros Templários medievais. Em 1307 o rei da França e o papa, principais opositores do poder e fortuna dos templários, os difamaram como adoradores do diabo na figura de Baphomet. Com isso foram perseguidos, torturados, assassinados e, claro, tiveram suas riquezas confiscadas. Os poucos que conseguiram fugir teriam fundado a Maçonaria.

Não se sabe se já havia essa figura de Baphomet entre os templários realmente ou se os maçons a adotaram posteriormente, mas sabemos que o grande objetivo da Maçonaria é promover a busca incansável pelo conhecimento universal e pela sabedoria e Baphomet é a representação disso.

Mas a imagem conhecida hoje como sendo a de Baphomet, aparentemente, não é maçônica. Ela foi inventada pelo ocultista francês Eliphas Levi, no século XIX e rapidamente se popularizou na Europa cristã como sendo a imagem do próprio diabo. Foi adotada como figura importante por Aleister Crowley, o fundador da magia contemporânea e também considerado um satanista pelo senso comum, no início do século XX.

Mas por que os quimbandeiros nomeiam essa imagem de Belzebu? Belzebu é bem mais antigo que Baphomet. Ele aparece no Antigo Testamento; no primeiro livro de Reis é chamado de Baal e no segundo é chamado de Baal-Zebulde. Essa é a fusão de dois deuses: Baal é o senhor dos trovões, agricultura e fertilidade dos cananeus, enquanto que Zebub é o deus das moscas e da pestilência dos fenícios. Mas no livro de Mateus do Novo Testamento, o nome Belzebu aparece como príncipe dos demônios, logo o nome Belzebu foi associado ao diabo cristão. O fato de Baphomet ter uma cabeça de um bode estabelece uma ligação direta com o diabo que frequentemente era narrado nas crônicas e contos  modernos sobre os festins de feiticeiras em que o próprio se apresentava como um bode. Assim, nas retóricas pregações cristãs, Baphomet e Belzebu se tornam um só. 

Mas o que isso tem a ver com a quimbanda? A quimbanda surge nos anos de 1960 como uma religião independente que, ainda que use o nome da divindade iorubá, se vale de princípios e valores do ocultismo e misticismo europeus contemporâneos, ou seja, pós Levi e pós Crowley. A relação aqui é de poder, pois estamos falando de uma religião perseguida e demonizada ao longo dos séculos de escravidão de africanos no Brasil. Os escravizados perceberam que os seus senhores temiam o diabo e viram aí uma oportunidade de estabelecer uma relação de poder com eles. O inimigo do meu inimigo é meu amigo.

Assim, as primeiras imagens representativas de exus e pombagiras seguem a lógica do sincretismo cristão de associação com o diabo, possuindo chifres, pés de bode e pele vermelha, como se imaginava o diabo e seus demônios no início do século XX (sim, nem sempre o diabo foi imaginado como tendo pele vermelha). Logo a quimbanda também adotaria esse "panteão" satânico como seu e a figura de Baphomet/Belzebu estaria incluída.

Sendo exu uma entidade espiritual que incorpora em seus médiuns seguindo certos parâmetros identitários, não divirjo da existência de um Exu Belzebu no escopo cosmológico da quimbanda. Só não confunda a quimbanda com satanismo e estará tudo certo.

Axé o!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).

Comentários

Felix Marinho disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Felix Marinho disse…
Simplesmente um prato cheio para os detratores das religiões de matriz africana no Brasil, tão vilipendiadas e massacradas em parte por esse tipo de gente.

Inclusive a "Quimbanda" de Porto Alegre (ou melhor a Quimbanda inventada em Porto Alegre), ou melhor ainda, o que se convencionou chamar de a "Qimbanda de Mãe Ieda", tem simplesmente transformado a tradição religiosa de Batuque em um verdadeiro circo, com direito a todo tipo de palhaçada e avacalhação.


Sendo que tem ficado cada vez mais difícil sabermos diferenciar o verdadeiro e tradicional Batuque da Umbanda, do Candomblé e da Quimbanda. E como se não basta-se esse embrolho todo, agora também estão traçando o Batuque com o tal do "Culto Tradicional da Nigéria". É aquele mesmo, do pagou levou.

Essa senhora (que não merece estar em nenhum segmento religioso afro-brasileiro),
antes de colocar imagem de Belzebu ou outro capeta qualquer para chamar a atenção e aparecer deveria sair à rua pelada, com a bunda pintada de vermelho, um abacaxi na cabeça e uma melancia no pescoço. E se gosta tanto de capeta, está no lugar errado. É na igreja evangélica que a senhora deveria estar.

Nunca ouvi falar da existência de um exú catiço chamado Belzebu,
mas se ela cultua é porque deve incorporar com ele. Contudo só acredito que ela realmente está com Belzebu na cabeça, no dia em que o ver beber cachaça no bico da chaleira quente.

A sacanagem está tão generalizada, que a necessidade do retorno dos antigos testes de santo a todos os segmentos religiosos de matriz africana (sem excessão), tem se tornado uma urgência. Ai veremos quem realmente tem santo na cabeça.

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