Por que os batuqueiros não comem arroz com galinha?

por Hendrix Silveira*


Uma das coisas mais incompreendidas na tradição do Batuque são os ewó, ou seja, as interdições. Existem muitas interdições que precisam ser respeitadas pelos iniciados. Temos interdições quanto a certas práticas, interdições de certos horários e interdições alimentares.

Estas interdições são importantes para a garantia da plenitude da relação com o sagrado de quem vivencia uma tradição de matriz africana. As mais significativas são aquelas que impõem restrições durante o "resguardo", período de abstinências que se segue às obrigações realizadas no processo iniciático. Neste período, para o Batuque, não se pode beber bebidas alcoólicas, fazer sexo e entrar em ambientes que tenham morte e doença como cemitérios, hospitais e presídios. No tocante a nutrição, até mesmo comer algumas frutas específicas ou café preto, por exemplo, podem ser restritos.

Estes interditos são específicos para o período de resguardo e visam cobrir um período de cuidados com nossa espiritualidade que está mais sensível às forças externas, afim de nos proteger caso essas forças sejam negativas.

Mas existem algumas práticas que precisam ser restringidas pelo resto da vida de quem é iniciado nestas tradições. No caso do Batuque temos a cobertura da cabeça em certos horários e a abstenção de comer arroz com galinha.

A cabeça (Orí) para as tradições de matriz africana é a parte mais importante do corpo. É a primeira a nascer e é nela que possuímos os elementos necessários para adquirirmos conhecimento e sabedoria: os olhos, os ouvidos, o nariz, a boca e o cérebro. Além disso a cabeça é sagrada, nela reside um Orixá, nosso ancestre mítico e também nosso destino, nosso projeto mítico-social, o Odu. Por isso ela deve estar protegida nas horas entendidas como limítrofes (0h, 6h, 12h e 18h) para se evitar um ataque dos Ajoguns, forças sobrenaturais que lutam contra os seres humanos e contra os Orixás e que atuam sempre nesses horários.

As restrições alimentares são comuns nas tradições de matriz africana e dependendo da nação ou da família religiosa podem variar muito. Exceto o arroz com galinha. Os interditos alimentares estão relacionados às divindades e aos ancestrais. Certos alimentos são prescritos como interditados a determinadas pessoas devido a sua relação com o Orixá. O iniciado, como descendente mítico dos Orixás guardam muito de suas propriedades físicas e psicológicas, de forma que a divindade e a pessoa é como se fosse um só. Em última instância, o Orixá se torna um modelo para seus iniciados e, por respeito e dedicação ao sagrado, restringimos o consumo de certos alimentos ao longo de nossas vidas. A restrição mais conhecida é a de Oxalá, divindade da Criação, que foi proibido de tomar uma bebida alcoólica, o emu (e por extensão todas as bebidas alcoólicas), logo, seus filhos também estão proibidos.

Mas a restrição mais importante é a do arroz com galinha ou galinhada, como queiram. Este é um prato altamente nutritivo, sem sombra de dúvidas, feito com arroz cozido na panela com a galinha com osso. Mas a questão não está relacionada à nutrição. A interdição a este prato tipicamente gaúcho é por pertencer ao culto aos antepassados. Este culto é muito fechado e tudo o que pode ser feito nele não se pode reproduzir fora dele, pois estaríamos invocando forças relacionadas à morte. Embora o culto aos ancestrais seja de regozijo, de memória, o Batuque separa muito fortemente a relação que temos com nossos mortos da que temos com nossas divindades. A proibição do consumo da galinhada se dá em nosso meio cotidiano, pois, como diz Norton Corrêa, "o batuqueiro é batuqueiro sete dias por semana; 24 horas por dia." Não há dissociabilidade entre as práticas do sagrado e a vida secular do iniciado.

Da mesma forma que Deus proibiu os judeus de comerem porco, e Alá proibiu os muçulmanos de comeram além do porco animais predadores, O culto a Egun nos proíbe de comer arroz com galinha fora do culto.

Evitarmos o consumo de arroz com galinha é até fácil, de certa forma. O problema são as instituições. Escolas e hospitais muitas vezes oferecem esse prato a todos indiscriminadamente, sem dispor de uma alternativa para os usuários iniciados. O argumento sempre se pauta pelo valor nutricional do alimento ignorando completamente o valor espiritual que para quem vivencia uma tradição de matriz africana é altamente nociva. A ignorância das instituições é perdoável, desde que mudem seu cardápio ou contemplem com uma alternativa a pessoa que não deve se alimentar de prato proibido. Se deliberadamente não fazem isso, se não possuem essa sensibilidade, então estão cometendo ato flagrante de racismo religioso.

Este pequeno texto surge em momento de recrudescimento do racismo religioso em nossa sociedade. Recrudescimento este que visa nos destituir de nossa humanidade cujos significados estão na civilização africana ao qual dedicamos nossa fé e nossas forças.

Axé o!

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Hendrix Silveira é Babalorixá, Doutor em Teologia e Professor de Ensino Religioso.

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