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Mostrando postagens de 2022

DESFAZENDO EQUÍVOCOS SOBRE O ARISUN DO BATUQUE

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Por Hendrix Silveira* Arisun, Eresun, Erisun são palavras que nomeiam o ritual fúnebre no Batuque. Semelhante ao Axexê no Candomblé Ketu, Sirrum no Candomblé Jeje, Mukondo no Candomblé Angola, Tambor de Choro no Tambor de Mina do Maranhão, o objetivo deste ritual é o mesmo. É possível que o termo derive de Arosun - ara (corpo) + osun (sono) - significando "corpo que dorme", pois o "sono é primo da morte". Mas também pode derivar de Aisun , vigília noturna sem dormir, prática comum nos ritos funerários do passado. Tenho lido nas redes sociais as pessoas dizendo que o Arisun é uma homenagem, falando de merecimento para certas pessoas: "fulano merecia que lhe fizessem o ritual"; "foram feitas grandes homenagens ao falecido". Não pode haver equívoco maior que essas interpretações. O Arisun não é apenas uma homenagem ao morto. É um ritual de encaminhamento da alma do morto para o Orun com a intenção de que se ancestralize, ou seja, de que sua alma enc

O BEM, O MAL E O JUSTO NAS TRADIÇÕES DE MATRIZ AFFRICANA

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Por Hendrix Silveira*  Perguntaram para uma filha de santo de nossa comunidade se nós fazemos o mal. Curiosamente esta é uma de três das constantes perguntas que me fazem em minhas palestras.¹ Na minha tese de doutorado - que em breve se tornará livro ( Afroteologia: teologia das tradições de matriz africana ) - falo sobre a questão do mal na afroteologia. Por isso não tratarei das questões mais complexas, filosóficas e teológicas. Quero falar sobre nossas práticas cotidianas com base nessas questões. Já foi amplamente divulgado, por mim mesmo e outros pensadores insiders de nossa tradição, que as tradições de matriz africana como o Batuque e o Candomblé não são tradições maniqueístas. Essas tradições se pautam pela existência do bem E do mal em tudo. Seja nos objetos inanimados, nos minerais, nos animais, nas pessoas e até mesmo nos Orixás, o bem o e mal são forças dicotômicas, mas não necessariamente antagônicas. Algumas vezes até dialogam entre si. Então a resposta à pergunta &quo

A RODA DO BATUQUE

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Por Hendrix Silveira* Dia desses eu e minha esposa, Patricia de Oyá, estávamos assistindo no Youtube um vídeo de uma festa à divindade Oyá no Nagô, uma das tradições de matriz africana que se estrutura em Pernambuco,¹ e como nos parece vimos muitas semelhanças com o Batuque. Exceto num ponto. Todas as tradições de matriz africana possuem um momento litúrgico em que se dança em roda, mas percebemos que no Batuque ela tem uma importância muito maior que em outras tradições. No Candomblé há uma separação entre o momento em que os iniciados dançam, a roda, e o momento em que os Orixás manifestados dançam. Nesta sequência a roda é desfeita para dar lugar aos Orixás dançarem. No Tambor de Mina do Maranhão também há roda, mas esta não se desfaz com a manifestação dos Orixás. O mesmo acontece no Nagô e no Xambá de Pernambuco e também no Batuque do RS. Mas como disse, ao observarmos a roda no Nagô pelo Youtube percebemos que ela se desfaz muito facilmente, fica com "buracos", seguidam

O USO DA ROUPA BRANCA NO BATUQUE

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Por Hendrix Silveira* Tenho percebido em serões e em festas de Batuque que há um certo desconhecimento a respeito das roupas dessa tradição, sobretudo no tocante a sua cor. A cor nas tradições africanas não são meramente parte de questões estética, mas também e principalmente de FUNDAMENTO. Mas creio que antes de falar sobre isso, preciso explicar o que é fundamento. Isto sempre foi motivo de indagações: qual a diferença entre fundamento, costume e tradição? Embora as palavras pareçam guardar um mesmo sentido - e é justamente isso que causa tanta confusão - não possuem a mesma função no tocante as tradições de matriz africana. As tradições são inventadas e, segundo Hobsbawm (2012), é "um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado." Geralmen

SOBRE LUGAR DE FALA

Por Hendrix Silveira* Já faz algum tempo que me pergunto: qual é o meu lugar de fala? A conclusão a que cheguei estudando sobre o tema é a de que todo mundo fala de um lugar. Me valendo das categorias desenvolvidas por Juana Elbein dos Santos, penso que este lugar pode ser desde dentro ou desde fora. O desde dentro requer experiência de vida. O desde fora requer estudos profundos. O desde fora deve dialogar com o desde dentro para se ter uma apreensão total do tema. O desde dentro deve dialogar com o desde fora  para racionalizar sua experiência. Tenho desconfiado da acusação de que há um conflito "emoção versus razão" apontado pelos que interpretam Senghor dessa forma. Acredito realmente, com base na cosmopercepção africana de Oyewumi, que o pensamento afrocentrado desenvolvido por Asante, se vale de todos os sentidos humanos, incluído aí a razão, em igual proporção. Com base em Platão tenho dito que opinião não é e nunca será conhecimento. O conhecimento vem do estudo profu

Por que os batuqueiros não comem arroz com galinha?

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por Hendrix Silveira* Uma das coisas mais incompreendidas na tradição do Batuque são os ewó , ou seja, as interdições. Existem muitas interdições que precisam ser respeitadas pelos iniciados. Temos interdições quanto a certas práticas, interdições de certos horários e interdições alimentares. Estas interdições são importantes para a garantia da plenitude da relação com o sagrado de quem vivencia uma tradição de matriz africana. As mais significativas são aquelas que impõem restrições durante o "resguardo", período de abstinências que se segue às obrigações realizadas no processo iniciático. Neste período, para o Batuque, não se pode beber bebidas alcoólicas, fazer sexo e entrar em ambientes que tenham morte e doença como cemitérios, hospitais e presídios. No tocante a nutrição, até mesmo comer algumas frutas específicas ou café preto, por exemplo, podem ser restritos. Estes interditos são específicos para o período de resguardo e visam cobrir um período de cuidados com nossa

Evolução do Exu (e Pombagira)

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Se tem uma palavra que eu odeio é essa: evolução . A odeio porque é usada de forma indiscriminada para falar de mudanças, se supõe, para algo melhor. A culpa é de Darwin... Charles Darwin teoriza para nós que organismos melhores adaptados ao meio em que vivem tendem a se perpetuar, enquanto que outros sucumbem, extinguindo-se. Muitas vezes uma mutação na estrutura genética de uma espécie faz surgir outra que melhor se adapta às condições ambientais. Na esteira de seu sucesso teórico surgiram outras teorias como a da superioridade de certos grupos humanos sobre outros (darwinismo social), classificação das raças humanas (racismo) e, claro, a evolução espiritual kardecista. Todos aplicaram a teoria de Darwin ao seu próprio campo idiossincrático, com a intenção narcisista de se autoproclamar modelo para os demais, que ainda não atingiram seu "grau de evolução", logo, são inferiores. Mas a teoria de Darwin fala sobre a evolução das espécies e não da de seres da mesma espécie, de