Evolução do Exu (e Pombagira)

Se tem uma palavra que eu odeio é essa: evolução. A odeio porque é usada de forma indiscriminada para falar de mudanças, se supõe, para algo melhor. A culpa é de Darwin...

Charles Darwin teoriza para nós que organismos melhores adaptados ao meio em que vivem tendem a se perpetuar, enquanto que outros sucumbem, extinguindo-se. Muitas vezes uma mutação na estrutura genética de uma espécie faz surgir outra que melhor se adapta às condições ambientais. Na esteira de seu sucesso teórico surgiram outras teorias como a da superioridade de certos grupos humanos sobre outros (darwinismo social), classificação das raças humanas (racismo) e, claro, a evolução espiritual kardecista.

Todos aplicaram a teoria de Darwin ao seu próprio campo idiossincrático, com a intenção narcisista de se autoproclamar modelo para os demais, que ainda não atingiram seu "grau de evolução", logo, são inferiores. Mas a teoria de Darwin fala sobre a evolução das espécies e não da de seres da mesma espécie, de forma que nós, seres humanos, somos exatamente os mesmos há 300 mil anos. Não evoluímos desde então, pois caso o tivéssemos seríamos um outro tipo de ser, uma nova espécie.

- "Mas professor! Não vivemos mais nas cavernas, temos até computadores, internet..." - me indagaria um aluno surpreso.

- "Isso não é evolução" - afirmo - "é progresso material e intelectual, pois as próximas gerações sempre aprendem com as anteriores e melhoram o que sabemos e possuímos. O computador e o primeiro osso que usamos como ferramenta estão intimamente ligados e possuem o mesmo propósito básico: são ferramentais de sobrevivência."

Progressão, crescimento, modernização não é o mesmo que evolução.

Uma pessoa pacífica não é mais evoluída que outra mais agressiva. Nós seres humanos vivemos em sociedade e por isso precisamos de gente pacífica e também de pessoas agressivas para a sobrevivência de nossa espécie. Por isso cultuamos Ogun, a guerra e Oxalá, a paz.

Bem, acho que agora que já expliquei que não existe evolução numa mesma espécie, posso falar sobre o tema título dessa reflexão.

A maioria dos pensadores umbandistas apontam que há níveis evolutivos entre as entidades dessa religião, onde os Erês/Crianças/Cosminhos estariam no patamar mais alto; os Pretos Velhos estariam no segundo nível; abaixo destes os Caboclos e por fim, bem abaixo dos demais, os Exus e Pombagiras.



Não é difícil de perceber aqui a moralidade cristã impingindo sua marca na teologia umbandista: os espíritos das crianças são entendidas como inocentes, sem pecado; os pretos velhos são servis, mansos, devotos e sábios; os caboclos são altruístas, mas os Exus e Pombagiras são lascivos, beberrões e podem fazer tanto o mal quanto o bem na mesma medida e com o mesmo entusiasmo.

Por isso as tentativas de explicação para o que é o Exu (encantado, não Orixá) sempre esbarra na questão evolutiva devido a ampla divulgação dos conceitos de Alan Kardec. Exu seria um espírito menos evoluído porque ainda vinculado à vida mundana terrestre. Kardec fala que os espíritos possuem níveis de evolução, dos mais baixos aos mais iluminados, e que todos percorrem esses graus. Mas, e de certa forma contradizendo Kardec, o Caboclo das Sete Encruzilhadas disse em sua lendária manifestação na Federação Espírita de Niterói (RJ) que "a morte é o grande nivelador universal". Disse isso em repúdio ao sistema kardecista que considera os espíritos da umbanda inferiores aos doutores brancos dos centros espíritas. Tenho considerado os dizeres do caboclo como um fundamento teológico umbandista, por isso não pode haver um processo evolutivo espiritual onde Exu está no sopé, enquanto os erês no cume.

Todas entidades da umbanda estão no mesmo nível, digamos assim, apenas atuando em campos vibratórios diferentes.

Ainda assim, pessoas hoje dizem que o Exu evoluiu.

Nos anos 1960/1970 o Exu era uma entidade que chegava no final das sessões de umbanda para descarregar as pessoas e a "matéria", como dizia minha avó. Geralmente apenas uma pessoa incorporava. Não tinha roupa, não fumava e bebia no chão. Não dava passe nem consulta como as demais entidades. Ficavam agachados, contorcidos com as mãos em forma de garra rosnando e dando gargalhadas. Só haviam Exus de encruzilhada. Eram assentados apenas banhando suas imagens com cachaça. Rolavam sem proteção sobre cacos de vidro e comiam porcarias como demonstração de seu poder sobre a matéria. Eram chamados de compadres. As pessoas tinham medo deles.

Nos anos 1980/1990 o Exu ganha sessão própria, mais tarde sendo chamada de curimba. Inicialmente bebia apenas cachaça e no chão. Doutrinado, foi levantado de forma que chegava no chão, mas depois levanta ficando em pé. Por isso, passou a beber no copo. Ganhou roupas na sua cor, preta e vermelha sendo que os homens vestiam bombachas. Surgem os Exus de calunga e seu vínculo com Omolu, daí o uso das cores preta e branca e as vezes o roxo e preto. Davam passe e consulta. Fumavam charuto. Começaram a atrair multidões para os terreiros que aos poucos começaram a reduzir frequência das sessões de umbanda e aumentar as de Exu. Seu assentamento usa apenas aves. Demonstravam seu poder fazendo o que os anteriores faziam e também caminhando em brasa quente, dançando sobre fogo e dando consultas com verdades impressionantes. Falavam com voz rouca, cavernosa, e as giras com voz doce. O dono da casa é o primeiro a chegar e último a sair. Ao subir, Exu era na porta enquanto a Gira no meio do salão. As pessoas os respeitavam.

Anos 2000/2010: Exu não tem mais assentamento, mas sim "cabala" e começam a usar 4 pés. Aparecem axés de faca, de búzio, de sapato, de capa, de bengala, de governo. Trocam a cachaça por whiskey, conhaque, vodka e a (famigerada) cerveja. Chegam apenas curvados e depois levantam. Usam sapatos. Não dão mais passe nem consulta, apenas conversam com as pessoas. Não tem poder de sequer segurar a bexiga dos cavalos. Começam a fumar cigarro. Giras falando com voz rouca. Nas festas tem corte para chegada de Exu, com entrada triunfal. Todos sobem na porta.

Anos 2020: Exu faz corte de boi. Não existem mais sessões, apenas festas que ganham dimensão extraordinária. Fumam cigarro e bebem cerveja. Se cumprimentam beijando as mãos. Já chegam em pé, quase como se fossem Orixás. Roupas coloridas. Falam com voz normal. Deixam os cavalos bêbados. Sem falar nas histórias cabulosas. Tudo é teatral e espetaculoso. Em nada lembra religião, mas apenas uma festa entre amigos.

Exus antigos como Gira-Mundo, Brasa, Pantera Negra, Mirim, Cobra, desapareceram. Se perpetuaram rainhas e meninas de todo o tipo.

Muitos defendem essas mudanças sob a "capa" da "evolução". Bom, se for isso parece mais que "involuiu". E daí eu penso: mas os Orixás e os Caboclos e os Pretos Velhos? Então são menos evoluídos que os Exus e Pombagiras? Nestas linhas não tento generalizar, pois sempre aparece alguém pra dizer que lá em tempos imemoriais a mãe fulana com 150 anos de assentamento já se fazia isto e aquilo. Falo de minha experiência. De quem foi exuzeiro por uma década antes de me decepcionar. Hoje vou aqui e ali, não enche uma mão se contar nos dedos, mas estou ciente de que existem muitas pessoas honestamente religiosas que fazem da kimbanda uma religião e não uma autopromoção. Queria que fossem a maioria.

Axé gbogbo

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