SOBRE LUGAR DE FALA

Por Hendrix Silveira*


Já faz algum tempo que me pergunto: qual é o meu lugar de fala?

A conclusão a que cheguei estudando sobre o tema é a de que todo mundo fala de um lugar. Me valendo das categorias desenvolvidas por Juana Elbein dos Santos, penso que este lugar pode ser desde dentro ou desde fora.

O desde dentro requer experiência de vida. O desde fora requer estudos profundos. O desde fora deve dialogar com o desde dentro para se ter uma apreensão total do tema. O desde dentro deve dialogar com o desde fora  para racionalizar sua experiência.

Tenho desconfiado da acusação de que há um conflito "emoção versus razão" apontado pelos que interpretam Senghor dessa forma. Acredito realmente, com base na cosmopercepção africana de Oyewumi, que o pensamento afrocentrado desenvolvido por Asante, se vale de todos os sentidos humanos, incluído aí a razão, em igual proporção.

Com base em Platão tenho dito que opinião não é e nunca será conhecimento. O conhecimento vem do estudo profundo. E isto vale tanto para os "desde dentro", quanto para os "desde fora".

Àse gbogbo 

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* Hendrix Silveira é Babalorixá, Doutor em Teologia e Professor de Ensino Religioso.

Este texto é uma adaptação de outro publicado no Facebook em 08 de outubro de 2020. Abaixo uma discussão a respeito do tema na publicação citada.

INTERLOCUTOR

Bom dia e sua bênção.

Essa expressão é de suma importância não só ao movimento preto mas para a sociedade.

Interpretação valem suas interpretações e podemos rumar de forma lógica para todos os sentidos.

Mas quando falamos ou alguém fala ou imprime a expressão de lugar de fala está na sua propriedade inata. No Brasil, o termo foi popularizado através de seu sentido utilizado pela filósofa Djamila Ribeiro, em seu livro: O que é lugar de fala? Segundo a própria autora que popularizou a expressão, há um caráter individual mas corresponde à grupos, 'a lugares de cidadania'. Recentemente ganhou as mídias pela polêmica envolvendo a atriz Kéfera e o youtuber Luba no twitter. Mas a sua amplitude é uma forma de reconhecimento do caráter coletivo que permeia todas as oportunidades e constrangimentos que atravessam os sujeitos pertencentes a determinado grupo social e que sobrepõe o aspecto individualizado das experiências sociais e do social.

Assim como falar de aborto, por exemplo, onde o lugar de fala é das mulheres pela própria condição como protagonistas. Evidente que o caráter individual aqui é não dispensar o homem como uma forma de co-autor e participe, mas como trata não dá questão do a favor ou contra, sim do direito da mulher sobre seu corpo, como exemplo.

O lugar de fala trata não só do conhecimento sob a experiência mas soma de ambos, sem arredar a forma subalternizada que mesmo possuindo esses saberes ou experiências mas ainda assim o modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente.

Novamente pode no sentido de colorismo alguém falar sobre discriminação racial, mas a propriedade é sim do preto pq há a imediata diferença entre o Sr. se apresentar com símbolos e insígnias que representem sua religião e um preto igualmente vestido ou igualmente portando. A cor importa sim.

Como exemplo óbvio.

A colonização produziu a sistematização dos conhecimentos e se esqueceu, promoveu esse olhar de desigualdades.

Evidente que olhar a expressão de fora ou de dentro faz uma enorme diferença, mas requer mais que uma análise ou definição, porque como a própria expressão diz de forma simples, requer o ter e ser do agente sob pena de tratar do tema de forma rasa. Como é um argumento falso, é uma falácia chamada argumentum ad hominem - quando você tenta atacar a pessoa que está argumentando em vez de atacar o argumento que ela está usando + fazendo parecer algo culto, profundo ou mesmo válido quando não o é por sua própria condição natural.

Poderia ser traduzido como as oportunidades que surgem, dando espaços à todos os indivíduos que sofrem no cotidiano na pele alguma forma de opressão, na violência que sofre, o seu olhar individual que se soma aos que igualmente passaram na carne a mesma experiência e não de um olhar científico.

A Coordenadora regional da Rede Estadual de Afroempreendedorismo em Santa Catarina, Giselle Marques ressalta antes de haver o diálogo sobre opressões de gênero, raça ou classe, é necessária uma “escuta silenciosa”.

" O lugar de fala traz, na sua essência, a consciência do papel do indivíduo nas lutas, criando uma lucidez de quando você é o protagonista ou coadjuvante no cenário de discussão. Não há silenciamento de vozes, na verdade é justamente nesse ponto que queremos avançar. Traz uma liberdade para cada grupo se reconhecer e entender em qual espaço se encontra conforme o processo de organização e falar com propriedade atravéz dele."

Então é mais que uma análise: exige ser, ter e viver aquela experiência na pele, como dizemos.

Um conjunto de vivência que vem do indivíduo ao coletivo por ser ele quem é.

HENDRIX SILVEIRA

Nada disso é novidade pra mim que milito na luta antirracista há mais de 20 anos e possuo essas leituras. A discussão sobre lugar de fala é anterior à Djamila. Como citei, Juana Elbein dos Santos já falava disso nos anos 1970 e outros autores dos Estados Unidos e Europa também discutiram isto. Usei todos estes autores e autoras para desenvolver meu método da exunêutica na construção de todos os meus trabalbos acadêmicos. Me parece que há um equívoco na interpretação do "lugar de fala" como sendo um lugar de exclusividade quando no meu entendimento é um lugar de representatividade. No mundo acadêmico e no mundo real sobram lugares de fala, mas faltam muitos lugares de representatividade. Estou falando do primeiro, não do segundo.

INTERLOCUTOR

Hendrix Silveira eu entendi e disse : tornou-se popular e recente polêmica. Não disse ao contrário seu conhecimento. Mas meu contraponto não é que baste o conhecimento para ter 'representativa', principalmente para determinados temas e os exemplifiquei. Como disse: interpretações para todos os lados.

Mas a atual me agrada e me parece ser um caminho lógico, principalmente para temas dos quais não baste apenas o conhecimento acadêmico mas onde deve haver a essencial vivência. O conhecimento acadêmico e posso eu também dizê-lo, não só por vivência mas pelo conhecimento formal, há necessidade do sentir extremo. A posição de hierarquizar saberes é que produziu historicamente a exclusão de uma série de ponto que devem ser abordados decorrente do sentir na prática.

'A teoria do lugar de fala é sobre refutar um universalismo que silencia e substitui a voz de muitos que silencia e substitui a voz dos outros. Ela tem intenção deliberada de suscitar nas pessoas brancas a consciência de que o lugar que elas ocupam —inclusive na produção do conhecimento— é um lugar de privilégio e poder sobre os que vivênciam na pele.'

Mas como disse: de interpretações existem várias. Fico com a que grita para denunciar opressões estruturais.

Em nenhum momento me reportei ou questionei o seu conhecimento, já que o meu também vem de uma posição bem estruturada e muito clara por vertente também legítima, e as referências, embora atuais, são muito bem qualificadas.

HENDRIX SILVEIRA

não sei se me fiz entender. Minha reflexão não questiona o lugar de fala da representatividade. Aliás disse que nem estou falando disso. O lugar de fala enquanto atributo da representatividade é um lugar de fala legítimo e imprescindível, do qual, inclusive, milito à décadas. Minha reflexão se dá no campo do debate sobre a exclusividade de legitimidade de um lugar de fala desde dentro OU desde fora. Tenho difundido há anos que a cosmopercepção africana é inclusiva, por isso naturalmente uma cultura do "E" e não do "OU".

INTERLOCUTOR

Hendrix Silveira há lugares que são sim exclusivos pela própria natureza do tema e citei exemplos.

Não se trata 'só do que eu estudei', mas do que eu vivi e e sinto.

Exemplo típico e que mencionei: o aborto. Um médico ou um religioso ou um homem trarão sua visão somente baseadas na teoria. Mas não se trata senão do direito da mulher sobre seu corpo e sim que qualquer gravidez pode ser acidental. Exemplo.

Sobre a questão religiosa ou legitimidade cultural que a cosmopercepção africana ser inclusiva, esse conceito se tornou extenso por demais.

Cada um só pode estar no seu lugar de fala daquilo que além de ter conhecimento teórico, tem o do chão de seu barracão, de sua descendência. Senão será apenas retórica teórica e acadêmica, não contribui com nada, senão o alguém me disse ou li em algum lugar.

Aliás, uma cultura que por assim pensar se embranqueceu adotando 'a cultura colonozidora européia da Casa Grande'; todas as vertentes de uma religião, que é de origem preta, de africanos livres que foram escravizados mas que ainda segue sendo descrita por 'historiadores como de origem escrava'. Esse discurso que serve para diminuir a importância do conhecimento de que eram os negros livres. Assim como, por pensar nessa amplitude, muitos nem sabem o que praticam e vão perdendo sua essência porque se esquecem de seu exato lugar de fala.

Não se trata do 'eu' sei ou estudei mas do eu vivi e eu senti.

Essa minha visão da expressão, que aliás serve para resgates e não confirmações do que ai já esta truncado, com suas barreiras e abismos.

HENDRIX SILVEIRA

Temos bases epistemológicas muito diferentes ìyá. Penso que não há "exclusividade" no lugar de fala, mas sim representatividade, pois não podemos confundir opinião com conhecimento. Pegando seu exemplo, uma discussão sobre aborto sem mulheres seria meramente opiniática, da mesma forma que se fosse apenas com mulheres sem nenhuma reflexão proveniente de estudos sociológicos. Eu como homem tenho minha opinião sobre o assunto consolidada através da audição de mulheres comprometidas com uma percepção de mundo que valoriza os discursos de liberdade de decisão e de propriedade exclusiva do corpo feminino pela própria mulher que o habita. Por isso, não posso cooptar com discursos, mesmo vindo de mulheres, que desdenham dessa posição. Vide os discursos de Damares Alves. Por isso digo no meu texto que o conhecimento se dá pela fusão da perspectiva desde dentro com a desde fora, desde que esse "desde fora" seja epistemologicamente legitimado por experiências desde dentro. Ou seja, há um fluxo e refluxo no conhecimento; uma circularidade; uma retroalimentação. Por isso a representatividade é importante no lugar de fala, mas a exclusividade não faz qualquer sentido quando falamos de Educação, conhecimento, episteme.

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