A RODA DO BATUQUE

Por Hendrix Silveira*


Dia desses eu e minha esposa, Patricia de Oyá, estávamos assistindo no Youtube um vídeo de uma festa à divindade Oyá no Nagô, uma das tradições de matriz africana que se estrutura em Pernambuco,¹ e como nos parece vimos muitas semelhanças com o Batuque. Exceto num ponto.

Todas as tradições de matriz africana possuem um momento litúrgico em que se dança em roda, mas percebemos que no Batuque ela tem uma importância muito maior que em outras tradições. No Candomblé há uma separação entre o momento em que os iniciados dançam, a roda, e o momento em que os Orixás manifestados dançam. Nesta sequência a roda é desfeita para dar lugar aos Orixás dançarem. No Tambor de Mina do Maranhão também há roda, mas esta não se desfaz com a manifestação dos Orixás. O mesmo acontece no Nagô e no Xambá de Pernambuco e também no Batuque do RS.

Mas como disse, ao observarmos a roda no Nagô pelo Youtube percebemos que ela se desfaz muito facilmente, fica com "buracos", seguidamente para que os Orixás manifestados fiquem dançando em frente aos tambores, ou seja, embora ela exista aparentemente não há muitas regras sobre ela, pelo menos não se comparado ao Batuque. E é dessas regras de etiqueta que vou falar agora.

A primeira coisa que devemos compreender é que a roda no Batuque é extremamente importante e possui regras rígidas que nem sempre são observadas pelos mais novos, seja por ignorância ou por displicência.

A roda é dividida entre homens (cis e trans) e mulheres (cis e trans). Essa divisão se dá pois é uma representação simbólica da união entre as duas forças cósmicas que geram vida. Assim, na roda, homem sempre entra atrás de homem e mulher atrás de mulher. Assim as forças masculinas, representação simbólica da virilidade e fecundidade, se concentra no grupo dos homens, enquanto que as forças femininas concentram nas mulheres o seu poder de acolhimento, proteção e fertilidade.

O mesmo acontece quando uma roda numerosa exige a formação de duas: uma interna e uma externa. Quando esse tipo de roda acontece, sempre na parte interna ficam tão somente os homens e na externa as mulheres. Isso ocorre também como representação simbólica da união das forças masculinas e femininas. A força masculina é sempre interna porque esta força é a que se projeta no interior da força feminina, ou seja, o poder de fecundidade masculina é representado pela abertura da terra para acolher a semente, assim como o útero se abre para acolher o sêmen. Por outro lado, a roda exterior é feminina pois simbolicamente representa o acolhimento e proteção dos elementos masculinos cuja fusão proporcionam a geração de uma nova vida. É por causa desses valores teológicos que há essa separação.

Roda no Ilê Oxum Docô: a interna é masculina e a externa feminina.
Roda no Ilê Oxum Docô: a interna é masculina e a externa feminina.

A roda sempre caminha no sentido anti-horário, pois esse movimento representa o retorno aos tempos imemoriais, aos tempos em que os Orixás transitavam na Terra conosco. E eles vêm! Também é entendido que este é o caminho que o sol traça na abóboda celeste, tendo relação, então, com o movimento de rotação da Terra.²
Por ser sagrada, sempre que entramos na roda ou a deixamos devemos saudá-la estendendo a mão ao chão e trazendo aos lábios. Não podemos entrar e sair da roda como se estivéssemos passeando no parque. Desta mesma forma saudamos o Quarto de Orixá. Também saudamos as pessoas importantes que estão fora da roda ao passarmos por elas: o babalorixá ou iyalorixá da casa, os alabês e os demais sacerdotes identificados pela Delogun ou Imperial. Essa saudação se dá estendendo ambas as mãos ao solo, curvando-se levemente para frente e dizendo "agô", expressão na língua yorubá que significa "com licença" no sentido religioso. No centro da roda não pode haver trânsito de pessoas, pois é o local mais sagrado no momento do Batuque. Logo transeuntes e os trabalhadores das mídias sociais que fazem a cobertura da festa não podem estar ali. Nunca devemos entrar na roda de calçados, pois é um desrespeito ao sagrado.

A roda nunca para e não pode haver "buracos" entre as pessoas. Quando Orixás dançam em frente aos tambores devemos dar a volta neles para que a roda não pare. Caso hajam espaços entre as pessoas estende-se as mãos para preenchê-lo. Esses espaços podem permitir que forças obscuras se juntem à roda prejudicando a obrigação ou causando males aos participantes.

Mas há momentos da festa pública em que não há roda: durante o alujá e na saída do ecó. O alujá é um toque específico para o Orixá Xangô que ocorre logo após a Balança, também conhecida como Roda de Quatro Pés, Roda de Prontos, Roda de Xangô ou ainda Kasun. Esta roda é exclusiva para os iniciados que possuem assentamentos de Orixás, ou seja, "prontos".³ Durante essa liturgia os Orixás se manifestam em seus filhos e enfim toca-se o alujá para que esses Orixás dancem em frente ao tambor, motivo pela qual a roda é parada.

Na saída do ecó todos devem virar de costas para o centro do salão, ou seja, viram para a parede. Não há dança e a roda fica parada. Somente os prontos envolvidos com a saída do ecó é que podem ver o que está acontecendo.

Por fim, uma das últimas liturgias é a dança sob o alá de Oxalá. Quando é ebó de quatro pés ou terminação, se estende o alá de Oxalá e a roda precisa passar por baixo. Todos devem passar por baixo do alá de |Oxalá a fim de serem abençoados pelo nosso Criador.

Talvez as pessoas não entendam toda a complexidade da roda. Tentei por um pouco do que sei nestas linhas a título de resguardo dessa tradição. Ainda existem outras especificidades que não debaterei, pois pertencem a lados que não vivencio, logo não posso opinar, mas talvez os aborde em escritas futuras.

Axé o!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).

¹ No passado essa tradição era chamada de Xangô e seus vivenciadores os xangozeiros, mas devido a demonização da palavra com o advento das igrejas eletrônicas, os pernambucanos preferiram mudar o termo para Nagô ou até mesmo para Candomblé, por entenderem que este último é mais respeitado no Brasil. Outra prática proveniente na cidade de Olinda é o Xambá.

² Na roda aos Eguns o movimento é ao contrário, no sentido horário, pois representa o caminhar da vida rumo ao nosso destino final.

³ Bori de quatro pés é BORI e não PRONTO. Somente quem tem Orixás assentados é que podem participar da Balança e usar a Delogun.

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