O USO DA ROUPA BRANCA NO BATUQUE

Por Hendrix Silveira*

Tenho percebido em serões e em festas de Batuque que há um certo desconhecimento a respeito das roupas dessa tradição, sobretudo no tocante a sua cor. A cor nas tradições africanas não são meramente parte de questões estética, mas também e principalmente de FUNDAMENTO. Mas creio que antes de falar sobre isso, preciso explicar o que é fundamento.

Isto sempre foi motivo de indagações: qual a diferença entre fundamento, costume e tradição? Embora as palavras pareçam guardar um mesmo sentido - e é justamente isso que causa tanta confusão - não possuem a mesma função no tocante as tradições de matriz africana.

As tradições são inventadas e, segundo Hobsbawm (2012), é "um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado."


Geralmente se entende o "costume" como uma prática fraca, que pode ser mudada, alterada pelas inovações e mudanças dos tempos, mas esta interpretação está equivocada. O costume é uma prática de caráter imutável ao longo dos tempos, uma ação realizada por alguém num contexto social ou comunitário legitimada pelo passado; "tradição" seria o envoltório simbólico que legitima essas práticas ao demonstrá-las como parte desse passado que se preserva até os dias de hoje. Hobsbawm dá um exemplo: "'Costume' é o que fazem os juízes; 'tradição' é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado." Neste sentido, e trazendo para a realidade dos terreiros, o costume é a prática religiosa, por exemplo, do Bori. O Bori é um ritual de individuação e cosmologização do iniciado. Já a tradição é como o ritual é realizado em si. O Bori é uma prática que permeia todas as tradições de matriz africana, é um costume dessas tradições, mas a forma de se realizar depende de elementos simbólicos próprios de cada tradição.

Mas e o que seria, então, o "fundamento"? Esta palavra igualmente se confunde com tradição e costume. Para Abbagnano (2007) "fundamento" é "causa, no sentido de razão de ser", ou seja, é o motivo primeiro, a base que sustenta um costume. O "fundamento", num sentido teológico, é a base que sustenta uma prática religiosa. Pegando nosso exemplo, o Bori é o costume, a forma de realizá-lo é a tradição, mas o porquê devemos realizá-lo é o fundamento. Contudo o "fundamento" numa religião é sempre teológico, ou seja, é revelado nas estruturas epistemológicas daquela manifestação religiosa.  No cristianismo esse dado epistemológico é a Bíblia, o Alcorão para os islâmicos, os Vedas para os hinduístas, mas para nós são os textos sagrados de Ifá.

De posse destes aspectos conceituais, podemos agora refletir sobre a cor branca nas roupas do Batuque. A cor é muito importante e está presente em todas as tradições de matriz africana. Está intimamente relacionada aos Orixás. A cor vermelha indica que o Orixá é violento, bravo, temível e passional; a cor verde indica relação com as matas, com as plantas, com as florestas; a cor preta indica o oculto, o não revelado, o místico, o mágico; o azulão, é a alvorada, o nascer do dia, quando o céu noturno começa a clarear pela força do sol; o amarelo e o rosa são variantes cromáticas do vermelho indicando comedimento, mas ainda força e passionalidade; o azul claro é a a profundeza da mente; o branco é da pureza, da paz, da criação, das possibilidades de desenvolvimento. Por isso a cor branca é obrigatória em ritos de iniciação, sacralização e em ritos de passagem.

A cor branca pertence ao Orixá Oxalá, conhecido na África como Obatalá, o Senhor do Pano Branco. É o Orixá da Criação, Senhor da Vida, Pai dos Orixás e da humanidade, por isso o uso do branco é obrigatório em rituais que demonstrem relação com essa divindade.

Assim, todos os ritos de "renascimento" e de passagem pertencem à este Orixá. Omieró, Oribibó e Bori são ritos que consagram o Ori em diferentes níveis iniciáticos, por isso o neófito deve trajar branco. O apronte também é um rito de iniciação, uma vez que vincula a pessoa a um Orixá por meio de seu assentamento, ao mesmo tempo é um rito de passagem, já que o neófito deixa de ser um Abian, um recém-nascido, para se tornar um Yaô, um sacerdote "menor" ou "pronto" como dizemos no Batuque. O Ebomí ou "pronto com axés" é aquele que  recebe a titulação de maioridade iniciática por meio da liturgia de entrega de axés de Ifá e Obé, também é submetido a um rito de passagem, logo vestimos branco. O casamento também é um rito de passagem, já que os sujeitos envolvidos deixam a vida de solteire para se tornar uno com outra ou outras pessoas (as tradições de matriz africana são poligâmicas), logo usam o branco durante suas liturgias.

Também há outros momentos em que se usa o branco por puro fundamento: nos ritos imolatórios, também chamados de "serão", "matança" ou "corte", onde a vida dos animais é sacralizada, se usa o branco em respeito e pela misericórdia daquele que criou todos os seres vivos. A festa pública chamada de Terminação é a segunda festa pública em homenagem aos Orixás, mas esta pertence exclusivamente à Oxalá, onde ocorrem várias liturgias - mesa de Ibeji, casamentos, entrega de axés e axé de fala -, por isso devemos usar apenas trajes brancos.

O Batuque celebra a vida, seja nesta existência ou em outra, por isso o branco também é usado em ritos fúnebres. Em todos os momentos do ritual funerário do Arissun se usa roupas brancas. Alguns antropólogos entendem que por luto, mas na verdade é por celebração da passagem do ente querido para o Orun, onde terá uma vida eterna junto aos ancestrais e cuja memória será lembrada por todos os seus descendentes.

Existem empresas, mesmo dirigidas por batuqueiros, que vendem roupas nas cores do seu Orixá para serão, mas como vimos, o uso de roupas coloridas nestes momentos é um desrespeito ao Grande Orixá, Criador do Universo e dos seres vivos. O capitalismo não respeita religião nenhuma. Só seguem o "Deus Mercado". Sua ética é apenas estética, se valem do que é bonito ao ego de seus consumidores para vender, não importa se isso destrói os fundamentos, as tradições e os costumes do Batuque.

Axé o!

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Hendrix Silveira é Babalorixá, Doutor em Teologia e Professor de Ensino Religioso.

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REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. 2/ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

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