DESFAZENDO EQUÍVOCOS SOBRE O ARISUN DO BATUQUE

Por Hendrix Silveira*


Arisun, Eresun, Erisun são palavras que nomeiam o ritual fúnebre no Batuque. Semelhante ao Axexê no Candomblé Ketu, Sirrum no Candomblé Jeje, Mukondo no Candomblé Angola, Tambor de Choro no Tambor de Mina do Maranhão, o objetivo deste ritual é o mesmo.

É possível que o termo derive de Arosun - ara (corpo) + osun (sono) - significando "corpo que dorme", pois o "sono é primo da morte". Mas também pode derivar de Aisun, vigília noturna sem dormir, prática comum nos ritos funerários do passado.

Tenho lido nas redes sociais as pessoas dizendo que o Arisun é uma homenagem, falando de merecimento para certas pessoas: "fulano merecia que lhe fizessem o ritual"; "foram feitas grandes homenagens ao falecido". Não pode haver equívoco maior que essas interpretações.

O Arisun não é apenas uma homenagem ao morto. É um ritual de encaminhamento da alma do morto para o Orun com a intenção de que se ancestralize, ou seja, de que sua alma encontre o caminho para o descanso eterno, pois do contrário ficará vagando como alma penada pela eternidade, sem descanso, até levar todos os que conhece. Não existe ancestralidade sem rito fúnebre. Não existe desapego do mundo dos vivos sem rito fúnebre. Não existe a continuidade e garantia de renascimento sem o rito fúnebre.

O Arisun não se faz por merecimento. É um OBRIGAÇÃO no sentido que damos aos rituais que fizemos por toda a vida. Omieró, Bori e Arisun são OBRIGAÇÕES que fazem parte da vida religiosa de uma pessoa. Apronte e abertura de casa, assim como Oribibó, pode ou não acontecer para uma pessoa, mas o resto é obrigatório para quem vivencia o Batuque. Para todos sem distinção.




Bori e Arisun estão intimamente vinculados: Bori é a ligação, Arisun é o desligamento; Bori é o nascimento para a vida com Orixá, Arisun é o nascimento para a vida como ancestral. Por estarem vinculados ninguém se torna ancestral sem ter realizado em vida o rito de Bori. Tampouco é possível haver ancestralização sem o rito de Arisun.

Antigamente não tínhamos acesso às explicações africanas para o que realizamos. Isso fez com que as pessoas literalmente "achassem" qualquer coisa a esse respeito. Esse "achismo" sempre teve como base a própria experiência dos vivenciadores somados ao tipo de conhecimento de que se tinha contato. Assim, muitos pensavam que o Arisun prende a alma das pessoas no Balé; outros pensavam que Egun é o Orixá do falecido; outros ainda, influenciados pelo cristianismo ou espiritismo, pensavam que o Arisun podia ser substituído por uma missa ou que a pessoa simplesmente reencarnaria.

Estudando sobre isso publiquei o que encontrei no meu livro Não Somos Filhos Sem Pais (adquira aqui). O Arisun não prende a alma do morto no Balé. Assim como o quarto de Orixá é um espaço de recebimento de oferendas e súplicas aos Orixás, o Balé é um espaço onde os falecidos recebem oferendas e nossas súplicas.

Todos os iniciados no Batuque devem passar pelo rito de Arisun. Perguntado se um batuqueiro poderia renunciar ao ritual funerário, respondi que religiosos todos podemos ser sem abrir muito a mão de nossas vidas quando temos apenas um Bori, mas um Babalorixá ou Iyalorixá não é uma pessoa comum, não é apenas um religioso, é uma pessoa que tem uma responsabilidade com o mundo (ao cuidar dos Orixás que cuidam do mundo) e com seus iniciados, verdadeiros filhos míticos durante toda a sua vida e até mesmo no pós vida.

Tudo em nossa religião é estabelecido por meio de rituais: o bori é o nascimento; o apronte é a iniciação no sacerdócio (lembrando que nunca foi obrigatório, não é um passo necessário na religião, exceto para aqueles que tem este caminho); o recebimento de axés é a declaração pública da maioridade iniciática; abrir casa é o que te torna um chefe de família; o Osé é que garante o rompimento com o ano anterior para o estabelecimento de um novo ano, daí também a limpeza de fim de ano; o arisun é o que garante que a alma da pessoa seja encaminhada e tenha a chance de se ancestralizar e assim continuar a cuidar de sua família, tanto carnal quanto religiosa. Não existe livre-arbítrio no Batuque, temos que seguir as regras.

Arisun não é algo que simplesmente escolhemos não fazer, ou uma escolha de nossos parentes. É uma obrigação de todos os iniciados. No caso do iniciado ser uma babalorixá ou iyalorixá a situação ainda requer mais comprometimento, pois as implicações de sua não realização afeta a todos os seus descendentes religiosos.

Lembrem-se: quando falamos de mortos, falamos de morte.

Axé o!


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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).


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