O BEM, O MAL E O JUSTO NAS TRADIÇÕES DE MATRIZ AFFRICANA

Por Hendrix Silveira* 

Perguntaram para uma filha de santo de nossa comunidade se nós fazemos o mal. Curiosamente esta é uma de três das constantes perguntas que me fazem em minhas palestras.¹ Na minha tese de doutorado - que em breve se tornará livro (Afroteologia: teologia das tradições de matriz africana) - falo sobre a questão do mal na afroteologia. Por isso não tratarei das questões mais complexas, filosóficas e teológicas. Quero falar sobre nossas práticas cotidianas com base nessas questões.

Já foi amplamente divulgado, por mim mesmo e outros pensadores insiders de nossa tradição, que as tradições de matriz africana como o Batuque e o Candomblé não são tradições maniqueístas. Essas tradições se pautam pela existência do bem E do mal em tudo. Seja nos objetos inanimados, nos minerais, nos animais, nas pessoas e até mesmo nos Orixás, o bem o e mal são forças dicotômicas, mas não necessariamente antagônicas. Algumas vezes até dialogam entre si. Então a resposta à pergunta "se fazemos o mal" é sim. Isso pode chocar algumas pessoas, inclusive vivenciadores de nossa tradição ou de umbandistas. O problema que implica nesta resposta é a semântica da palavra em nossa sociedade que é profundamente cristianocentrada.

Um dos pilares do cristianismo é o maniqueísmo que institui que as coisas são boas OU más, ou seja, tudo possui uma natureza que é boa ou má. Essa teologia do OU é diametralmente oposta a teologia do E, como é o de nossa tradição. Infelizmente o cristianocentrismo, ou o poder de colonialidade do cristianismo na sociedade ocidental, se infiltra em todos os aspectos de nossas vidas incluindo o que pensamos a respeito do bem e do mal. Muitos vivenciadores assumem alguns aspectos da moralidade cristã em nossa filosofia, pois são bombardeados por esses valores. O "dar a outra face", regra moral cristã ainda que pouco seguida, muito pregada, por vezes permeia os discursos batuqueiros e candomblecistas, principalmente daqueles que possuem uma segunda pertença com a Umbanda. Como a Umbanda é uma tradição miscigenada carrega muitos aspectos morais do cristianismo e do espiritismo e o maniqueísmo é uma delas.

As tradições africanas não são nem boas nem más, mas sempre buscam a justiça. Embora haja esse discurso, não deixamos a justiça nas mãos divinas. Até podemos pedir que Xangô faça a justiça, mas isso é acompanhado de um ebó. Este ebó sempre terá o tom de justiça, pois se alguém nos trata com maldade, devolveremos a maldade na mesma medida ou pior, para que seja lembrado e não se cometam erros futuros.

Nós das tradições de matriz africana conhecemos técnicas e métodos de manipulação das forças do cosmo e podemos invocá-las para se fazer justiça. Justiça, para nós, está no limiar com o que o Ocidente tem chamado de vingança, pois é equilíbrio. É a Lei do Talião registrada no Código de Hamurabi com quase 4 mil anos de existência. Se alguém me prejudica em algo é justo que eu o prejudique também. É equilibrar a relação. A moral do Ocidente cristianocentrado condena a vingança, pois a entende como emocional. Justiça seria racional, equilibrada pelas leis e códigos morais. Bem, nossa moralidade está na justiça como equilíbrio. Há racionalidade nela, mas também emotividade, pois somos seres integrais, cosmossensíveis como aponta Oyewumi.

Mas a justiça ocidental é embasada no Direito Romano que não é equilibrado, pois seleciona certos grupos sociais para obterem privilégios, enquanto outros não têm nenhum. Então as leis e a moral ocidentais sempre privilegiam uns em detrimento de outros. Isso não acontece nas comunidades tradicionais de terreiro. Nestes espaços de resistência e guarda dos valores civilizatórios africanos a justiça é cumprida pelo ebó, pela oferenda, pelo feitiço. O ebó é sempre um restituidor do equilíbrio, seja no campo do dinheiro, da saúde física e mental, do amor e também da justiça.

Mas então o que define o mal para nós? O mal é o primeiro passo. A justiça é sempre equilibrar esse passo dado. Se eu fazer o mal gratuitamente para uma pessoa, por motivo fútil ou torpe ou mesmo sem motivo, estaremos incorrendo em realização do mal. Agora se a questão é restaurar o equilíbrio essa mesma ação não é considerada má, mas justa.

Nós não pregamos o mal e não o praticamos em nosso cotidiano. De fato as pessoas que são entendidas como "feiticeiras" são as que usam as forças cósmicas APENAS para fazer o mal. Essa não é nossa realidade, mas não devemos ser hipócritas, pois nossa tradição condena teologicamente a hipocrisia. Então se fores perguntado se fazemos o mal diga que sim, mas se somos maus, diga que somos justos.

Axé o!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).

¹  As outras são: por que sacrificamos animais; e por que pais de santo "viram" gays.

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