A MORTE NA VISÃO AFRICANA


Àgo ye égbòn!


No último dia 18 de agosto fui convidado para participar do IV Seminário das Religiões Afro-Brasileiras promovido pela Afrobras. Nesta edição do seminário o tema era a Morte para as religiões africanas. Além de mim, também foram convidados o Pai Luiz Carlos da Oxum e Mãe Dila da Obá para palestrarem, o que me deixa muito honrado já que era o único que não era sacerdote sentado a mesa.
A minha proposta era expor ao público presente – o plenarinho da Assembléia Legislativa ficou lotado – noções básicas da cosmovisão africana sobre a morte, coisa nem um pouco conhecida em nosso meio.
A maioria dos nossos sacerdotes, por desconhecerem a teologia e filosofia iorubá, escolhem, para suprir essa lacuna, outras filosofias e teologias, sobretudo a espírita, para interpretarem questões inerentes à morte e aos mortos. Essa falta de conhecimento se dá pela perda do mesmo no transcorrer dos ensinamentos passados de geração após geração nas casas de batuque. Mas hoje em dia se fala muito em identidade afro-brasileira. Identidade essa que é buscada em África, berço da civilização negra, origem da qual devemos nossa cultura de modo geral e a religião no âmbito mais específico.
Então como pode o espiritismo kardecista – que foi fundado em França, na Europa, portanto uma cultura totalmente alienígena à África – contemplar isso? Ora, não contempla! Somente na África podemos encontrar respostas às questões inerentes a religião de matriz africana. Parece óbvio não é? Mas nem sempre nossos sacerdotes conseguem perceber isso.
Na Nigéria, país onde vivem os iorubás, o primordial é viver muito. O idoso é visto com muito respeito na comunidade. Sempre que alguém vai falar com uma pessoa mais velha, se for mulher ela se ajoelhará e beijará as suas mãos; já o homem se prostrará de bruços no chão em sinal de respeito. Morrer velho é tido como uma grande benção divina. Isso se dá porque não existe esse conceito cristão de que a morte se dá pela culpa. Segundo a bíblia, o deus judaico-cristão castigou os seres humanos com o trabalho, a doença, a velhice e a morte porque Adão e Eva o desobedeceram no paraíso, é o tal pecado original.
Mas para os iorubas, o trabalho é a forma pela qual se conquistam riquezas; a doença tem sempre um caráter sobrenatural, provém de alguém ou de alguma coisa que quer nos atrapalhar; a velhice é uma dádiva divina e a morte é o fim de um ciclo.
Mas o que acontece quando a pessoa morre? Vários mitos nos ensinam que é Xapanã quem traz Iku, a Morte, pela mão. O toque de Iku faz com que Bará, o senhor do corpo, o abandone tornando-o imóvel. Emi, o sopro divino, retorna para Olodumare, nosso único Deus. O Orixá ou Orixás ligados a essa pessoa retornam ao Orixá geral e a sua alma é levada por Iansã a um dos nove espaços de Orun, o mundo imaterial onde vivem os Orixás, os ancestrais e Olodumare. Se a alma for de um homem será cultuado como Egun, ancestre masculino, reverenciado na sociedade Egungun. Se for um espírito de mulher se juntará as Iami Oxorongá, as mães veneráveis, ancestres femininas, que são cultuadas na sociedade Gueledé.
Os Egun são cultuados sempre como espíritos individuais e a sociedade a eles relacionada só pode ser constituída por homens. Já as Iami Oxorongá tem seu culto num assentamento coletivo e, embora o cargo mais alto da hierarquia sacerdotal só possa ser composto por mulheres, seu culto é aberto aos homens e, inclusive, às crianças. No batuque há uma mistura desses dois conceitos e tanto os espíritos dos homens como o das mulheres são cultuados no mesmo local e a participação é aberta a homens e mulheres e a função sacerdotal pode ser desenvolvida por ambos. Embora se evite a presença de crianças, não está terminantemente vetada a sua participação.
Outra questão importante é a diferença dos cultos. A cultura aos ancestrais é chamada de Lessé Egun enquanto que o culto aos Orixás é o Lessé Orixá. Isto não significa que não há reverência aos ancestrais no Lessé Orixá, mas sim que os espíritos cultuados ali são de sacerdotes ou integrantes desse culto, enquanto que no Lessé Egun são cultuados os espíritos ligados a uma família ou clã.
A reencarnação é muito esperada, mas não tem nada a ver com o conceito espírita de resgate cármico, castigo ou punição. Também não se enquadram aqui idéias de evolução espiritual ou coisa semelhante. Para os iorubás se reencarna porque o bom é estar vivo, ora...
A pessoa sempre reencarnará num descendente seu, assim renascendo sempre na mesma família. Apesar disso, cada pessoa é única. No seu ori haverá um odu (destino) que lhe é reservado apenas para aquela vida, concluído com sua morte.
As questões referentes à morte no batuque têm que ser revistas por nós. Só assim poderemos afirmar com certeza que praticamos uma religião de fato. Sem achismos nem agregações de conceitos e teorias alienígenas à África.

Pùpó àse gbógbó!
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A MORTE NA VISÃO AFRICANA Artigo publicado no Jornal Bom Axé. Edição 27. Enebe Editora Ltda. Setembro/2007. Pág. 12

Comentários

magda de oxum disse…
Esse assunto é de extrema importância a todos que de alguma maneira estão ligados ao culto afro porque sempre quando converso com sacerdótes me suprendo com as respostas respectivas em relação a morte ,reecarnação ,céu ou inferno sempre encontro confusões baseadas em culturas de outras religiões como cristianismo e espiritismo,porém raros sacerdotes tem suas doutrinas baseadas em cultura afro em sí , espero que torne a falar sobre esse assunto em seu blog! axé
Anônimo disse…
Axé! Muito bom texto ao qual peço liçença, com todo respeito, para acrescentar algumas palavras:

"èmí" é a palavra iorubá para "espírito" enquanto "aráòrun" ... quando vem para o ayé, recebe o nome de "enìkéji" (a segunda pessoa) por ser o duplo da pessoa numa coexistência "òrun-ayé".

"èémí" é a palavra iorubá para respiração, sendo a representação sensível do "èmí"; daí existir muita confusão nestes dois conceitos.

"bara do corpo" ligado a Èsù é um conceito afrobrasileiro influenciado por um certo livro-tese que vendeu muito no Brasil, mas na religião iorubá este conceito está relacionado com a placenta que era acumulado em um "ìkòkò" e "amò", representando o "ìpòrì" do "ìdílé".

"àtúnwá" é a palavra iorubá para explicar que o "aráòrun" voltou a existir no "ayé" através de um novo "ìpìn" de seu "òkè-ìpònrí", individualizado pelo seu "iyè-àpò", que poderá ou não ser cultuado como "egúngún".

Muito axé !
Laércio disse…
gostaria de trocar emails a respeito do assunto.sou zelador de umbanda e minha visão é muito mais próxima ao conceito afro.
laercio.umbanda@gmail.com
aguardo.
Unknown disse…
Olá boa tarde, estou me preparando para um seminário em minha escola, cujo o tema é como é cultuada e vista a morte na religião africana, gostaria de saber se pode me ajudar me enviando mais coisas sobre o assunto, para que eu possa enrriquecer meu trabalho, achei o post interessantissimo, meu email é rafaelaliriosotero@gmai.com. Muito Obrigada!
Onde surge o Bara do corpo, sendo que os Yoruba não reconhecem este bara do corpo, em que momento ele surge, sendo Abimbola nunca mencionou, nem mesmo os sacerdotes Yoruba o reconhecem?
Àkúdàáyà

O morto-vivo na crença iorubá.

Entrevista com os babalaôs

Ifáiyemí Elebuíbon, de Òsogbo

Awoyemí Aworeni, Arabá de Ifé.

Jornal Nigerian Compass

23 de Maio de 2009

Tradução de Luiz L. Marins

Fevereiro de 2012
http://culturayoruba.wordpress.com/akudaaya-o-morto-vivo-na-crenca-ioruba/

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