Record ataca religiões afro, novamente

Termo cunhado pelo Teólogo Afro Jayro Pereira de Jesus, Afrotheofobia se refere a discursos e práticas de todo o tipo que discriminem e preconceituam as religiões de matriz africana e afro-brasileiras. As religiões afro foram perseguidas ao longo da história humana devido a uma série de fatores, todos ideológicos. O principal perseguidor, desde sempre, foi o cristianismo tanto direta quanto indiretamente.
O que motiva essa perseguição, penso, é um dos elementos mais importantes dessa religião: o conceito de bem e mal, ou melhor, o seu maniqueísmo. Para os cristãos o bem e o mal são forças distintas que se originam em “seres” distintos. Assim o “bem” tem origem em Javé, enquanto o “mal” tem origem no diabo. Estas ideias teológicas possuem fundamentação em Agostinho de  Hipona, que publicou em 426 o seu “Cidade de Deus”, onde descreve o mundo dividido entre o dos homens (o mundo terreno, sem deus e por consequência à mercê do diabo) e o dos céus (o mundo espiritual, livre do mal e do diabo). A cidade de deus seria aquela que estivesse em plena conformidade com os desígnios desse deus, fundamentado em suas escrituras sagradas. Isto significa que tudo o que não estivesse em conformidade com essas escrituras, pertence ao diabo.
O que surge daí é a Idade Média.
Durante a Idade Média ouve uma grande perseguição à todas as formas religiosas que não estavam em conformidade com a bíblia. Assim as religiões tradicionais europeias foram associadas ao diabo e sua prática foi esmagada pela Igreja.
Hoje vemos algo idêntico.
Recentemente foi ao ar uma matéria jornalística no programa Domingo Espetacular da Rede Record de Televisão, onde o repórter Michael Keller associa assassinatos à práticas religiosas africanas. A matéria é completamente tendenciosa. O mais curioso é ver que o repórter utiliza as mesmas expressões utilizadas pela Santa Inquisição durante a Idade Média para definir as práticas ritualísticas ugandenses.
Na edição de chamada da matéria já demonstra a má-fé dos jornalistas da Record ao falar de crianças assassinadas e mostrar cenas de rituais que, no decorrer da reportagem, percebemos que não tem nada a ver com os fatos.
Já no início da reportagem Keller fala sobre as décadas de atraso econômico do país, mas não diz que é devido à exploração colonial inglesa e seu decorrente abandono após a independência em 1962. Depois afirma o crescimento fantástico que o país está tendo, mas associa isso à supostos rituais que incluiriam assassinatos de crianças.
O termo que usa é “sacrifícios de seres humanos” e não assassinato, ou seja, ele atribui caráter religioso aos assassinatos com a intenção óbvia de desqualificar a religiosidade local. Mas não só isso: ao dizer que para cada prédio existe um assassinato, Keller quer que acreditemos que essas são práticas típicas do país, o que é desmentido em seguida já que aparecem várias notícias em jornais, entrevistas com pais inconformados e fundações que lutam contra o infanticídio. Isto por si só já demonstra que esses assassinatos não são uma expressão cultural ou religiosa, mas sim um fato social que é combatido pela população.
Keller visita templos e sacerdotes numa tentativa débil de relacionar uma coisa à outra. A narrativa que dá sobre as imagens é de pura má fé. Com certeza esse “profissional” matou as aulas de antropologia na faculdade que estudou. Chama os templos de "casas de feitiçaria" e as sacerdotisas de "bruxas" tal qual um inquisidor medieval. Não entende os rituais que presencia, nem busca entendê-los, apenas os descreve segundo seu entendimento pessoal completamente desconectado de seus propósitos teológicos e sociais.
É público e notório que a Record pertence ao Bispo fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo e que as igrejas neopentecostais, mas esta em especial devido ao imenso poder econômico que possui, declararam guerra às religiões de matriz africana. Essa matéria, visivelmente encomendada pela Igreja, é mais uma demonstração da articulação cristã na tentativa de caluniar as religiões de matriz africana. Não é de hoje que somos acusados de assassinos de crianças, mas devido à inexistência de provas a Igreja mandou seus repórteres direto na origem de nossa religião, a África, para, numa tentativa vil, provar que falam a verdade.
É triste ver um veículo concedido por nós cidadãos se dedicar à vilipendiar inescrupulosamente uma cultura exclusivamente para fins próprios. A história está se repetindo. O próximo passo é queimar pessoas em praça pública. Se o caro leitor compactua com isso, se mantenha sentado, mas se não, então junte-se ao movimento pela liberdade religiosa.

Axé.

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