Idade é posto: a hierarquia do Batuque

É muito comum as pessoas acharem que no Batuque não há hierarquia exceto a que separa filhos de pais e mães de santo. Ledo engano. O Batuque, como é típico de toda religião de matriz africana, possui uma rigorosa hierarquia.

Toda hierarquia no Batuque está alicerçada na ancestralidade e senioridade iniciática. Ou seja, quanto mais velho iniciaticamente falando, mais alto é o seu posto, logo mais venerável é a pessoa. Esse venerabilidade, contudo, não é gratuita, pois exige uma responsabilidade.

No Batuque existem 3 níveis iniciáticos: Bori, Pronto e Pronto com Axés. O Pronto com Axés será sempre hierarquicamente superior ao Pronto, que por sua vez é superior ao Bori. Além desses 3 ainda há as pessoas que chamamos de "cabeça lavada" ou omieró e ainda os que cumpriram obrigação de Oribibó. Estes ficam abaixo dos boris na escala hierárquica. Embora possamos contar na hierarquia do Batuque, os leigos estão tecnicamente fora dela, já que seu vínculo com a casa é essencialmente descomprometido. O leigo, muitas vezes é chamado de cliente, porque tem fé na força dos Orixás consultando o oráculo e realizando oferendas e trabalhos, mas não há vínculo direto com a casa. Contudo são os contribuidores financeiros da casa, o que garante seu funcionamento.

Em cada um desses níveis ainda há a hierarquia do tempo de iniciação. Assim um pessoa que tem 8 anos de bori e 30 anos de idade é considerada hierarquicamente mais velha que outra que tenha 4 anos de bori e 60 de idade. A idade fisiológica é irrelevante para a hierarquia que é sempre espiritual, embora seja observada.

O tempo de casa também é irrelevante, pois uma pessoa que tem 15 anos de casa e 10 de apronte é mais velha que outra que tenha 20 anos de casa e 5 de apronte.

Contudo não é fácil ser o mais velho. O mais velho é o mais responsável e, por consequência, o mais respeitável. Isso exige desse mais velho um comportamento ética e moralmente exemplar. Modelar para os mais novos. O poder dos mais velhos não é subjugar os mais novos, mas torná-los aptos a chegar no seu nível de conhecimento e sabedoria. O mais velho não pode ser um ditador ou general, tão pouco um displicente e fraco. O mais velho é quem ajuda a manter o nome do Ilê com honras e ajuda o babalorixá ou ialorixá a ensinar os mais novos a se comportar e a cumprir as tarefas que devem ser cumpridas. Enfim, ajuda a manter a ordem no terreiro. Mas lembre-se de que todo terreiro precisa se renovar para se manter fortalecido, por isso a presença dos mais novos é importante, então os respeite, tenha paciência com eles, pois eles serão os mais velhos de amanhã.

Aos mais novos cabe o exercício da humildade. Saber ouvir é aprender. Obedecer é, antes de mais nada, cumprir com o que deve ser feito. Todo o trabalho no terreiro é sagrado e deve ser feito com seriedade e abnegação. Esqueça de seus títulos acadêmicos, de seus postos profissionais ou de seu status social. Eles não valem nada aqui. Esqueça até mesmo do tipo de relação que tenhas com o Pai ou Mãe de Santo da casa. No terreiro és apenas o mais novo, um integrante de uma comunidade que já existe muito antes de ti, então respeite os irmãos mais velhos, pois são eles que vão te ensinar a lida do terreiro. Peça a sua bênção sempre que os vir e não esfregue sua mão em seus rostos, pois isto é faltar com o respeito. Deixe que eles o façam por conta própria. Aprenda tudo o que puder de cabeça baixa, com humildade e respeito. Jamais mande nos mais velhos, nem ao menos lhes peça para fazerem algo. Eles sabem o que deve ser feito e vão fazer. Não deixe seu conhecimento pré-adquirido atrapalhar no novo ensinamento que está recebendo. Lembre-se que os mais velhos são o esteio da casa da qual escolheste frequentar e que eles já estavam lá antes de tu chegar.

Os filhos de santo que tem casa aberta devem se lembrar que na casa de seu Pai ou Mãe de Santo estão sujeitos também a essa hierarquia. Assim um filho ou filha de santo com casa aberta é hierarquicamente inferior a um irmão ou irmã seu que tenha mais anos de vasilha que ele, embora não tenha seus Orixás em casa.

É assim que as coisas são num terreiro.




Comentários

Anônimo disse…
Muito bom! Coisa que muitos esquecem , que a nossa religiao e baseada na convivencia e hierarquia!
Felix Marinho disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Felix Marinho disse…
Não achei nada "muito bom",
pois antes de entrar na questão da hierarquia no Batuque deveria comentar como se da a iniciação nessa tradição religiosa, popularmente chamada de APRONTAMENTO. Vindo daí o termo PRONTO.
O quê vem a ser um PRONTO, aquele que passou pelo ritual do APRONTAMENTO. Esse ritual é igual ao realizado no Candomblé Brasileiro ? Não, apesar de haver semelhanças em vários aspectos, como por exemplo a imolação de animais e a elaboração de um assentamento. Será nesses quesitos que haverá uma grande diferenciação hierárquica entre os PRONTOS.
Quando sobretudo esse ritual envolver sobretudo a imolação de um animal de quatro patas. Mais também na entrega a esses Pontos de determinados elementos rituais de Axés, como por exemplo a Mão de Faca e determinados fios-de-contas (como o Imperial). Entre outros, próprios e exclusivos do Batuque Sulista.

Esses PRONTOS se destacam sobretudo durante o ritual chamado de Balança, Roda de Balança ou Emissô Kassun.

Outra questão, não tem absolutamente nada haver ficar utilizando termos de Candomblé, como egbomi, yaô etc...
Vamos procurar dar o nome correto aos bois e acabar de uma vez por todas com tanta mistureba . Batuque é Batuque, Candomblé é Candomblé e Umbanda é Umbanda por favor. Cada um no seu quadrado.

Axé
Sergio Ivan disse…
Tenho uma pergunta
Se eu fizer Buri 2023 aí meu irmão 2024, sendo que já faz eleda primeiro que eu
Como fica e hieraquia?caso eu venho fazer o eleda depois.
Olá Felix Marinho. Teus comentários são interessantes, pois tu entendes que há semelhanças nos níveis hierárquicos do batuque e do Candomblé, mas advoga que os termos não devam ser empregados. Tudo bem, esta é tua opinião. Uso os termos comumente usados no Candomblé aqui por dois motivos: primeiro porque eles são termos africanos e não do Candomblé e de forma alguma o Candomblé é dono desses termos; segundo, para ficar claro a posição hierárquica entre iniciados do Batuque e do Candomblé justamente para evitar a depreciação do Batuque por candomblecistas (algo meio que comum por aí). As diferenças na forma não comprometem o sentido na realização dos rituais.

Outra questão é que meus textos são teológicos e não antropológicos, por isso não me preocupo em explicar como se dão as iniciações no Batuque, inclusive por entender que são segredos religiosos.

Continues lendo e comentando.

Axé
Olá Sérgio Ivan.

Não sei o que tu entendes por "Eledá", por favor explique-me.
Felix Marinho disse…
Babá o senhor está equivocado ou simplesmente distorcendo as minhas palavras, as semelhanças entre iniciações no Candomblé e no Batuque se dará apenas em alguns aspectos. Os quais citei: a imolação de animais e a elaboração de um assentamento de orixá. Mais como sabemos, param por ai não mesmo meu caro Babalorixá.
Os termos litúrgicos utilizados no Candomblé são próprios do Candomblé Brasileiro. E os termos litúrgicos utilizados no Batuque Sulista e Brasileiro serão outros, próprios e tradicionais do Batuque. Exemplos explícitos disso são os termos referentes a iniciação, APRONTAMENTO, PRONTO, MERCADO etc
Está errado ?
Felix Marinho disse…
Quanto a depreciação por parte de candomblecistas (rançosos e obtusos),
é aquela velha história os cães ladram e a carruagem passa. Pois o vento que venta lá, também venta a cá. Santo bom é santo que da certo.
Contudo acima de tudo devemos preservar as tradições tal qual foram engendradas pelos ancestrais, que as delegaram para que nós cuidássemos e zelasse, sem adulterações e misturebas. Vindo dessa máxima o termo ZELADOR .
Ninguém tem direito de deturpar e adulterar nada, apenas preservar e zelar.
Como eu disse, a forma ou seja as diferenças litúrgicas entre Batuque e Candomblé não afastam as duas tradições, pelo contrário, as aproximam, demonstrando quão irmãs essas tradições são, por óbvio terem a mesma origem na África sendo apenas adaptadas ao cenário gaúcho e baiano respectivamente.

Se eu converso com um ebome de Candomblé eu o reconheço como um pronto com axés e posso até mesmo convidá-lo para assistir um axé de fala, por exemplo. Da mesma forma posso convidar um yaô para participar de uma balança porque reconheço que ele é um pronto. Da mesma forma como já participei de rituais de Candomblé por ser reconhecido como Babalorixá, mesmo não tendo passado pelos processos litúrgicos dos quais um babalorixá do Candomblé precisa passar.

Batuque e Candomblé só são extremamente diferentes na cabeça de quem pensa assim. Usar termos africanos para definir o status hierárquico de pessoas do Batuque não é adulterar ou deturpar nada. É apenas utilizar a inteligência. A mesma inteligência que mudou os termos do Batuque para pai e mãe de santo (e não zelador, não existe esse negócio de zelador) de Babaláu e Babalôa, para Babalorixá e Yalorixá, termos inventados pelo Candomblé (pois nem existe em África).

Aliás a própria ideia de que uma babalorixá ou yalorixá são "zeladores" começou também no Candomblé, porque alguns sacerdotes entendem que devemos ser mais humildes e que ninguém é pai ou mãe DO Orixá, mas que sim somos "zeladores" de Orixá. Essa ideia desconhece conceitos e reflexões sobre o papel dos sacerdotes tanto referente aos próprios Orixás quanto às pessoas que eles iniciam.

Além disso, já disse em outros textos que existem 3 tipos de Batuqueiros: ortodoxos (que me parece é onde o Sr. se enquadra), o conservador (que é onde me enquadro) e o liberal.

Para o ortodoxo o Batuque tem que ser como há 100 anos, sem revisão em nenhuma de suas partes. O conservador acredita que a forma como os ritos são realizados são invioláveis, mas conceitos e sentidos dos rituais podem ser revistos. O liberal acredita que tudo pode ser revisto.

Axé

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