PEQUENA REFLEXÃO AFROTEOLÓGICA SOBRE A ÁGUA

Por Hendrix Silveira*

As tradições de matriz africana tem uma relação estreita com as forças da natureza. Acreditamos que as divindades (Orixás/Voduns/Nkisis) criadas por Deus (Olodumare/Mawu-Lisa/Nzambi) para regularem e fortalecerem com o seu poder (Axé/Nguzu) toda a Criação, partilham dessas forças. De fato isto faz com que algumas teorias de que os Orixás seriam as forças da natureza estão equivocadas. Os Orixás não são as forças da natureza, mas sim as forças da natureza existem em decorrência do poder dos Orixás. "Os Orixás estão especialmente associados à estrutura da natureza, do cosmo", diz Juana Elbein dos Santos em Os nagô e a morte (p. 102). Os quatro elementos - água, fogo, terra e ar - são a matéria simbólica do qual os Orixás têm controle através de seu Axé.

Estes quatro elementos não estão hierarquizados em níveis de importância. Cada um deles tem seu papel na manutenção do cosmo através dos Orixás. Contudo observamos que a água é o grande agente promotor de vida. Para os biólogos é a água a grande responsável pela existência de vida na Terra. Esta certeza teórica fez com que os astrofísicos acreditem que há chance de haver vida em outros planetas, caso exista água neles.

Esta relação da água com a vida já era percebido pelos africanos há centenas de anos. Um dos elementos de grande importância para os culto às divindades é a quartinha. A quartinha é um vasilhame feito de barro ou louça em forma de pequeno jarro ou garrafa. Ele é a representação simbólica do útero, o órgão feminino responsável pela geração da vida e da proteção ao seu desenvolvimento. Dentro do útero fecundado há o líquido amniótico que envolve o embrião com a intenção de protegê-lo de choques mecânicos (batidas) e térmicos (mudanças exteriores de temperatura).

Na cosmovisão africana a quartinha deve estar sempre cheia de água. Este procedimento se refere, teologicamente, a representação mítico-simbólica da força dos Orixás em gerar e manter a vida.

A água também está simbolicamente vinculada ao sangue menstrual, pois este, por sua vez, é símbolo do poder de fertilidade feminina. É o sangue menstrual que indica que a mulher está apta a ter filhos.

A relação da água com as mulheres fica clara a partir daqui. Ela se estabelece porque a água é o elemento material das Orixás femininas como Oxum, Yemanjá, Obá, Iansã e Yewá, todas divindades ligadas a rios ou ao mar. Seus símbolos máximos é o abebê, espécie de abano arredondado com um cabo que lembra um útero (no Brasil foi reconfigurado como um espelho ou leque).

Água é vida e vida é o bem maior dado por Olodumare através dos Orixás à Terra.

Àṣẹ oo!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor de Ensino Religioso. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor dos livros Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS e Afroteologia: construindo uma teologia das tradições de matriz africana, ambos pela editora Arole Cultural. Acesse meu Link Tree.

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