Os terreiros de Batuque no RS*

Terreira é um termo genérico para os templos da tradição de matriz africana no Rio Grande do Sul, mas devido à influência da literatura sobre o candomblé o termo “terreiro” também tem sido empregado. Para Juana Elbein dos Santos, o terreiro é um espaço de propagação de valores civilizatórios africanos, são verdadeiras “mini Áfricas”:

Assim, o século XIX viu transportar, implantar e reformular no Brasil os elementos de um complexo cultural africano que se expressa atualmente através de associações bem organizadas, ẹgbẹ́, onde se mantém e se renova a adoração das entidades sobrenaturais, os òrìṣà, e a dos ancestrais ilustres, os égun. (SANTOS, 2002, p. 32)

Outra forma muito comum de chamar este espaço é “casa de religião”. Este último desperta curiosidade, pois, geralmente, os terreiros também são as moradias do/a sacerdote/sacerdotisa. Este termo talvez esteja alicerçado na compreensão de que é um lugar onde se pratica a religião, os ritos específicos e internos, pois para essa tradição não apenas aquele é o espaço sagrado. Encruzilhadas, matas, praias, cachoeiras e pedreiras são lugares tão sagrados quanto os terreiros, mas é ali em que são realizadas as iniciações e onde estão os altares das divindades, os Òrìṣà. Assim o terreiro se inscreve como um axis mundi, um local que liga o mundo material ao mundo espiritual e também um imago mundi.

[…] se o Templo constitui um imago mundi, é porque o Mundo, como obra dos deuses, é sagrado. Mas a estrutura cosmológica do Templo permite uma nova valorização religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o Templo ressantifica continuamente o mundo, uma vez que o representa e o contém ao mesmo tempo. Definitivamente, é graças ao Templo que o Mundo é ressantificado na sua totalidade. Seja qual for seu grau de impureza, o Mundo é continuamente purificado pela santidade dos santuários. (ELIADE, 2010, p. 56)

Volney J. Berkenbrock (2007, p. 192) também vê no terreiro um espaço de unificação do cosmo, onde “os terreiros são como ilhas africanas, isoladas em uma realidade estranha, onde todo o universo (Orum e Aiye) está reunido. […] Ali pode ser trocado o Axé e garantida a dinâmica e a continuação da existência. Os terreiros são unidades completas e fechadas.”

Ilê Oxum Docô em Porto Alegre/RS
Contudo, materialmente, o que pode ser pensado dessa forma é o Yàrá Òrìṣà, o quarto de Òrìṣà ou “quarto de santo”, um cômodo da casa destinado aos altares onde ficam os assentamentos coletivos dos Òrìṣà (peji) e os implementos sagrados. Geralmente este quarto fica dentro da casa de moradia dos sacerdotes e é contíguo à uma sala grande de estar. Esta sala se torna o salão de ritos após ter seus móveis removidos em dias das festas religiosas. O terreiro, efetivamente, compreende todo o espaço do terreno. Os primeiros terreiros fundados na região de Porto Alegre ficavam fora da zona urbana, por isso dispunham de um grande espaço físico onde havia a casa de moradia dos sacerdotes, o Ilésin L'odè – uma casinhola onde ficam os assentamentos dos Òrìṣà L'odè (que ficam fora do Yàrá Òrìṣà): Èṣù L'odè, Ògún Avagan e Yánsàn  – além de um grande pátio para cultivo de plantas e ervas medicinais e litúrgicas, galinhas, cabritos e, em alguns casos, nos fundos, um espaço destinado ao Igbàlẹ̀, nome dado ao local de culto aos ancestrais.

Outro termo que vem sendo usado frequentemente, mas de forma muito recente também por influência do candomblé é Ilé (casa) ou Ilé Àṣẹ (casa de Axé), porém figura mais na nomenclatura dos terreiros do que propriamente como forma corrente de se referenciar o espaço.
Também de uso recente é Comunidade Terreiro ou Comunidade Tradicional de Matriz Africana. Este tem uso mais político já que o Governo Federal tem reconhecido os terreiros como espaços comunitários de resguardo de tradições africanas. A conceituação apresentada no Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana é a que melhor define os terreiros:

Povos e comunidades tradicionais de matriz africana são definidos como grupos que se organizam a partir de valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante o sistema escravista, o que possibilitou um contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade. (BRASIL, 2013, p. 12)

No site oficial da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República também há uma definição de comunidades tradicionais de matriz africana:

Comunidades tradicionais de matriz africana constituem espaços próprios de resistência e sobrevivência, que possibilitaram a preservação e recriação de valores civilizatórios, de conhecimentos e da cosmovisão trazidos pelos africanos, quando transplantados para o Brasil. Caracterizam-se pelo respeito à tradição e aos bens naturais; o uso do espaço para a reprodução social, cultural e espiritual da comunidade; e a aplicação de saberes tradicionais transmitidos através da oralidade. (BRASIL, acesso em 23 maio 2014)

Devido à forma como se perpetuou essa tradição no estado, principalmente em Porto Alegre, não existem terreiros tão antigos quanto os da Bahia. Desta forma só se pode conhecer o sistema de filiação religiosa dos sacerdotes gaúchos, a fim de se entender a perpetuação dessa mesma tradição.

__________________________________

* Extrato de nossa dissertação de mestrado em Teologia intitulada: “Não somos filhos sem pais”: história e teologia do Batuque do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Faculdades EST, 2014. 134 f. Dissertação (Mestrado em Teologia – área de concentração Teologia e História) – Programa de Pós-Graduação em Teologia, Faculdades EST, São Leopoldo, 2014. p. 65-67.

__________________________________

Referências utilizadas no trecho

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. 470 p.

BRASIL. Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015). Presidência da República. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. 2013.

______. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Comunidades tradicionais. Disponível em: http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais-1. Acesso em: 23 maio 2014.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 109 p.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàdé, àṣẹ̀ṣẹ̀ e o culto égún na Bahia. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. 264 p.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Por que os batuqueiros não comem arroz com galinha?

QUEM É KAMUKÁ?

RÚBỌ ÒRÌṢÀ - As Oferendas na Religião Afro: usos e sentidos