São Jorge e Ògún: sincretismo ou hibridismo

Quando Diocleciano assumiu o poder no Império Romano proclamou uma série de reformas com a intenção de reorganizar o Império que estava já decadente desde o domínio pela dinastia dos Severos. Para garantir a eficiência das reformas era necessário um Estado coeso e forte representado na doutrina que pregava a origem divina dos césares romanos.
Imagem coletada da internet
O cristianismo foi levado à Roma pelo apóstolo Pedro na década de 50 d.C. Esta então seita do judaísmo pregava que Jesus de Nazaré era o messias e salvador do povo judeu. Como condenava a idolatria e defendiam a existência de um único Deus, os cristãos se negavam a adorar a figura do imperador como uma divindade, pré condição imperial para a liberação de práticas religiosas não romanas em seu território.
Com isso os embates entre cristãos e romanos resultaram numa perseguição que concluía na morte de milhares de devotos. No século III muitas famílias de cristãos já seguiam essa ainda seita judaica há poucos gerações. Entre eles está a família de Gerôncio, embora soldado romano, e sua esposa Policrômia. Na Capadócia, atual Turquia, eles tem um filho e o chamam de Jorge. Embora Gerôncio tenha morrido em campanha militar, seu filho segue seus passos também ingressando no exército romano onde rapidamente chega ao posto de capitão.
Seus feitos como soldado o catapultam até se tornar um dos melhores tribunos do imperador Diocleciano. Contudo, o édito imperial que obrigam a todos os soldados a rejeitarem o cristianismo sob pena de morte e a prestar devoção aos deuses romanos fazem com que Jorge se declare publicamente um cristão.
É torturado inúmeras vezes, mas não nega a sua fé. Por isso é condenado a decapitação por golpe de espada, ordem que é executada em 23 de abril de 303.Seus restos mortais descansam na Igreja de São Jorge em Lida na Palestina (hoje Israel).
Ògún - obra de Cláudia Krindges
Logo sua história e lendas em torno de sua figura se mesclam o tornando um santo por martírio e aclamação popular. Durante as cruzadas sua imagem foi utilizada como estandarte para proteção dos soldados nas batalhas. Inglaterra e Portugal o tem como padroeiro. Este último o traz como estandarte na empreitada colonizadora sul-americana.
No processo de cristianização de africanos escravizados a Igreja Católica tentou sincretizá-lo com a divindade da guerra yorùbá Ògún. A intenção era a mesma aplicada séculos antes na própria Europa: conversão a longo prazo. Ao sincretizar as divindades africanas com os santos católicos, a Igreja esperava cristianizá-los com o passar do tempo e mesmo das gerações. Mas o que não esperavam é que a cultura africana fosse xenofílica. Os africanos não entenderam que São Jorge e Ògún eram a mesma divindade, mas sim que ao chamar Ògún de São Jorge, poderiam cultuar sua divindade debaixo dos narizes de seus escravizadores sem serem molestados. A este processo o pensador indiano Homi K. Bhabha chamou de hibridismo.
A partir de uma carta publicada no dia 29 de julho de 1983 no Jornal da Bahia intitulada Santa Bárbara não é Iansã e assinada por cinco das mais respeitadas Ìyás de Salvador - Stella de Oxossi, Menininha do Gantois, Tete de Yansã, Olga do Alaketo e Nicinha do Bogum - teve início um processo denominado de dessincretização onde rejeita-se toda e qualquer manifestação que sugira sincretismo entre as divindades africanas e os santos católicos.
Recorte do Jornal da Bahia de 29 de julho de 1983 onde foi
publicado a carta pública "Santa Bárbara não é Iansã"
Muitas pessoas abraçam fervorosamente esta proposta que buscava primeiramente um reconhecimento público de que as tradições de matriz africana podiam ser interpretadas como uma religião em si e não uma seita católica. Essa luta por reconhecimento e respeito caracteriza essa tradição desde os primórdios da história dos negros no Brasil. Entretanto para alguns mais conservadores representou o início da destruição de uma tradição secular originada nas confrarias religiosas que tinham por objetivo socializar os africanos e seus descendentes neste país.
No caso do Batuque essa discussão é bem mais recente. Me atrevo a dizer que foi a provocação do Prof. Jayro Pereira de Jesus, no início deste século que o sincretismo começou a ser questionado. As redes sociais hoje reproduzem a crítica ao sincretismo sem refletir muito sobre ela, o que me parece estar mais vinculado a ideia de uma busca por um suposto purismo. Busquei o caminho contrário e encontrei nas datas festivas dos santos católicos um tempo e espaço de resistência das tradições de matriz africana engendrado na ideia de universalização do culto africano e também numa forma de unificação de um culto costumeiramente espargido pelas comunidades afro.
Assim, hoje posso dizer tranquilamente que Ògún também pode ser comemorado em 23 de abril como num culto mais coletivo que extrapola as comunidades e ganha o povo leigo. Afinal, São Jorge certamente era filho de Ògún.

Àṣẹ oo! 

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