Sobre a atual conjuntura

Tenho recebido muitos vídeos e mensagens tanto pelo Facebook, quanto pelo Whatsapp de pessoas desavisadas que compartilham vídeos e áudios de gente mal caráter que usa a atual crise econômica, política e sobretudo a greve dos caminhoneiros como pretexto para, manipulando o povo, exigirem uma intervenção militar no país.

Já vi de tudo:
- Mensagem pedindo para apoiar a greve por um certo período de dias, pois assim legitimaria a intervenção militar;
- Suposto general manipulando as pessoas a acreditarem que, se o poder emana do povo, o povo pode dar poder aos militares para subirem ao poder;
- Gente em Dom Pedrito dizendo que é para tirar as faixas de greve das manifestações e substituí-las por intervenção já! Maior manipulação que está não há
- Até uma propaganda pró militares no poder altamente mentirosa e manipuladora.

Mapa conceitual criado por Hendrix Silveira
Não é possível fazer uma análise dessa conjuntura toda sem levar em conta aspectos de nossa cultura.

Nossa cultura possuí 4 pilares fundamentais: o racismo (que garante poder e privilégios aos brancos em detrimento de outros grupos humanos), o machismo (que garante poder e privilégios aos homens em detrimento de outros gêneros), a heteronormatividade (que garante poder e privilégios aos heterossexuais em detrimento de outras formas de sexualidade) e o cristianocentrismo (que garante poder e privilégios aos cristãos em detrimento dos não cristãos).

Nossa cultura é constituída de várias camadas superpostas que se complementam, interseccionam e até se contradizem, cuja coesão mantém toda a estrutura. Por exemplo: há elementos menores, mas igualmente fortes de nossa cultura como o classismo, ou seja, a divisão de classes que separa os ricos dos pobres e cria códigos morais legitimadores dessas distintas posições. Em parte, o que alimenta este classismo é uma visão de mundo calcada no cristianismo que induz a um discurso de supervalorização do trabalho em detrimento do estudo, por exemplo. Ainda assim, há uma desqualificação do trabalho diante do produto (por exemplo: pagamos tranquilamente mil reais num celular, mas achamos caro 50 reais para uma pessoa capinar o pátio). Esses elementos nos garantem que o processo cultural que estabeleceu a escravidão como estrutura da sociedade no Brasil colônia e Império, prevalece ainda em nossos dias.

Outro elemento importantíssimo e intimamente relacionado ao classismo é o que me faz concordar com Dom Luíz, príncipe herdeiro do trono do Brasil: há uma permanência do desejo brasileiro em ser um aristocrata, um nobre, de sangue azul, separado do povo comum não apenas em sua subcultura, mas também em todos os espaços.

Além de tudo isso, ainda possuímos outro fator construtor de nossas identidades profundamente enraizada em valores cristãos: a cultura messiânica.

Estamos sempre em busca de alguém para nos salvar dos males que nos afligem. Somos cegos e inertes. Acreditamos que somos vítimas de nossos males, ou até mesmo que nos auto-infligimos com eles. Estamos sendo punidos por coisas que fizemos ou algo assim. Logo esperamos um salvador, alguém que venha nos libertar das agruras da vida, de nossos descontentamentos, daquilo que nos faz mal; Por isso sempre esperarmos, não fazemos nada.

Devido a essa apatia somos facilmente manipuláveis pelas pessoas inteligentes que calcam paulatinamente os degraus do poder e uma vez lá criam elementos culturais legitimadores da manutenção de suas posições.

A luta dos grupos minoritários por acesso a direitos historicamente negados e culturalmente subvencionados reflete o que os grupos conservadores, ou seja, os que querem a manutenção dos valores de que já falei, se sintam profundamente ameaçados em suas posições de poder e privilégios. Assim propagam a sua palavra através de seus púlpitos eletrônicos, as redes de TV, que são a maior rede de comunicação dos ditames das classes abastadas aos pobres do Brasil.

A internet serviu por um bom tempo para levar a voz desses grupos minoritários à população e assim fomentar a desconfiança no que é dito pelos telejornais, novelas e atrações legitimadoras do status quo.

Contudo, as elites logo perceberam que a internet também poderia ser usada para seus próprios fins, apostando na cultura apática do povo e de nossa história de massa de manobra para carregar virais que agem profundamente em nossas mentes fazendo-nos acreditar que coisas como uma intervenção militar é a solução para nossos problemas.

Movimento dos caras-pintadas (foto: internet)
Nossa história é recheada de golpes: Dom Pedro I deu um golpe no próprio pai ao emancipar o Brasil de Portugal em 1822; José Bonifácio, seu tutor e fiel amigo deu um golpe em Dom Pedro ao tentar instituir uma constituição que limitava os poderes do imperador, 1823; no ano seguinte é a vez do Partido Português apoiar o imperador, deram um golpe no congresso e promulgaram sua própria constituição que vigorou até 1889, quando os militares em conluio com a poderosa burguesia cafeicultura paulista deram um golpe na monarquia e instituíram a república; O primeiro presidente, Deodoro da Fonseca deu um golpe em si mesmo e dissolve o congresso nacional em 1891. Mais tarde foi derrubado por outro golpe de seu próprio Vice, que então assume a presidência; já em 1930 temos o golpe de Getúlio Vargas ao derrubar o presidente eleito, mas que nem chegou a ser empossado, Julio Prestes. Vargas ficou no poder como ditador por 15 anos. Em seu segundo mandato, agora como populista, Vargas se obriga a se suicidar para evitar um eminente golpe militar. Em 1961 Jânio quadros faz o mesmo ao renunciar. Neste ínterim há uma tentativa às pressas de militares tomarem o poder impedindo o retorno de João Goulart, mas graças a campanha da legalidade liderada por Brizola e por toda a população gaúcha, se conseguiu adiar o golpe militar por mais um tempo até a sua inevitabilidade em 1964. Após a redemocratização, as primeiras eleições diretas foram fraudadas pela Globo que manipulou a opinião pública e elegeu Collor que mais tarde sofre um impeachment por ter confiscado a poupança da população. A Globo pôs Collor lá e também o tirou manipulando os então “caras pintadas”.

Lula é eleito por dois mandatos e elege sua sucessora por mais dois mandatos consecutivos. Ora, isso é uma afronta aos valores já ditos sobre cultura, poder e privilégios. Mais uma vez a mídia manipula as massas ao se valer da insatisfação de um grupo social, historicamente privilegiado, como sendo o de toda a nação para impedir uma presidenta legitimamente eleita por seu projeto político de dar continuidade ao seu trabalho. Sem falar em toda a armação que foi orquestrada “com o supremo, com tudo”, para impedir a candidatura de Lula este ano.

Emerge o nefasto Bolsonaro, eleito o político mais desprezível do mundo por revistas internacionais, como o salvador da pátria – se lembram do que falei mais atrás? Pois é... Mas Bolsonaro é burro demais e os que o apoiavam percebem que não é uma boa aposta. Lula, mesmo preso, tem mais chances de ser eleito que ele. Então o que fazer para que Lula nunca mais  se eleja novamente? - se perguntam. - Golpe militar, claro.

Só que golpe sem apoio de pelo menos parte da população como na marcha pela Família com deus pela liberdade em 1964 e apoio das potências mundiais como Estados Unidos, não consegue se manter. Então estão usando a atual crise para convencer você de que os salvadores do país são os militares. Só que militares no poder é apenas isso, militares no poder. Só mudarão as moscas.

As mudanças profundas em nossa política só podem ocorrer por mobilizações que emanam do povo, que precisa estar consciente de tudo e servir como agente das mudanças e não massa de manobra de grupos que querem o poder espalhando o medo na população.

Não seja um idiota alienado e manipulado por outros. Estude, pense, analise, critique, faça.

Seja massa sim, mas massa crítica e não massa de manobra.

A democracia passa por crises, rotatividade, conflitos, interesses, etc. Seja um agente construtor consciente de nossa história.

Isto é cidadania.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Por que os batuqueiros não comem arroz com galinha?

QUEM É KAMUKÁ?

RÚBỌ ÒRÌṢÀ - As Oferendas na Religião Afro: usos e sentidos