Drauzio e o abraço condenado

Não assisti, mas as redes sociais ficaram em polvorosa desde o último domingo onde, no Fantástico, o médico Dráuzio Varella abraça uma transsexual chamada Suzy. O problema foi que o que veio à tona após este ato de humanidade é o motivo pelo qual Suzy está presa. Logo, muitas pessoas antes comovidas com o ato, agora o condenam. Outras emissoras de televisão aproveitaram, em seus programas sensacionalistas, para atiçar a disputa por audiência e até aquele que ocupa o cargo máximo do executivo nacional abriu mão de apresentar um plano econômico que faça frente à queda vertiginosa da Bolsa de Valores brasileira por conta do preço do petróleo, ou sobre a crescente desvalorização do real frente ao dólar, a falta de investimento público em vários setores, a alta taxa de desemprego que aflige 11,9 milhões de brasileiros, ou mesmo o pífio crescimento do PIB, de 1,1%, em 2019; preferiu eleger o tal abraço como o problema nacional.

Mas por que o abraço do Dr. Dráuzio incomodou tanto? Tenho algumas suspeitas. Deixando para que pessoas com mais expertise e representatividade que eu falem sobre a transfobia como provável motivadora de tal repúdio, me concentrarei na questão punição versus recuperação no nosso sistema judicial e prisional a partir de elementos civilizatório-culturais que atravessam nossa sociedade, sem me aprofundar muito, pois não intenciono que este seja um artigo científico, mas apenas uma reflexão.

É o cristianocentrismo que promove, mesmo em quem não é cristão, a ideologia do punir ao invés de recuperar. O maniqueísmo, um dos pilares do cristianismo, promove uma ontologia em que as pessoas são boas OU más, ou seja, há uma natureza em cada pessoa que é boa OU má. Isto justifica a punição, a execração e a desumanização daquele que se desvia dos regramentos sociais. Nesta visão de mundo, a comunidade é alijada dos indivíduos que a compõe. Não se sente responsável por eles. De fato, alega que os indivíduos são responsáveis por seus próprios atos.

É claro que há contradição, pois não foi isso o que Jesus ensinou. Jesus Cristo preferia a companhia dos pecadores, pois eram eles que mais precisavam de sua palavra, de seu acolhimento, de seu abraço. Ele mesmo foi encarcerado, torturado e morto junto a ladrões, então Jesus sabia exatamente pelo que essas pessoas passavam.

Na cosmopercepção africana, de modo geral, a recuperação é sempre prioridade, pois nessa percepção de mundo o indivíduo faz parte da comunidade como algo que a define. O indivíduo nunca é percebido como um ser-em-si, mas somente o é no seio da comunidade, ou seja, o indivíduo é o que a comunidade é. Este é o princípio do UBUNTU. Logo, se um indivíduo comete um crime, não o faz contra a comunidade, mas sim COM ela. Neste caso, a redenção do indivíduo é o objetivo da comunidade, pois isto resultaria na sua própria redenção. Na percepção de mundo africana, já digo há muitos anos, não existe o "OU", mas apenas o "E", logo, as pessoas não são boas ou más, mas sim boas E más. A redenção de uma falta está na recuperação do indivíduo para a comunidade, como nos lembra a poesia de Tolba Phanem: 
"Se em algum momento da vida a pessoa comete um crime ou um ato social aberrante, o levam até o centro do povoado e a gente da comunidade forma um círculo ao seu redor. Então lhe cantam a sua canção. A tribo reconhece que a correção para as condutas antissociais não é o castigo; é o amor e a lembrança de sua verdadeira identidade."
Oxalá, assim como Jesus, também foi encarcerado, preso e torturado. Por sete longos anos o pai de todos os orixás esteve em meio aos criminosos, sofrendo o mesmo que sofriam. O abraço do Dr. Dráuzio é o abraço de Jesus e de Oxalá. O acalento para aqueles que foram marcados pela sociedade como indignos de convivência. É a expressão pura da humanidade que muitas vezes essas pessoas não tiveram acesso. É a chance de quem errou sentir que pode ser mais e melhor. que pode mudar; que pode ser uma pessoa completa novamente, para uma nova vida.

Àṣẹ

Bàbá Hendrix Silveira, ThD

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