O LUTO NO BATUQUE

 Por Hendrix Silveira*

Muitas pessoas têm me perguntado sobre o luto, o tempo, as condições, o que pode e o que não pode ser feito, quem determina ou coisas desse tipo. As pessoas me perguntam não porque sou o "sabe-tudo" ou qualquer coisa neste sentido. As pessoas me perguntam porque confiam na minha avaliação já que possuo vivência religiosa desde o nascimento e estudo reflexivo sobre todos os temas de nossa fé.

Aprendi muito com meu babalorixá (que tem mais de 40 anos de religião), com meu padrinho (que é de outra nação e igualmente tem mais de 40 anos de religião), com minha avó (que morreu com mais de 60 anos de religião) entre outros babás e iyás que tive a oportunidade de escutar com atenção e do qual, humildemente, apresento aqui as respostas mais comuns.

O que é o luto?

O luto é um período em que o batuqueiro deve ficar de resguardo de obrigações para os Orixás por períodos variados. Existem dois tipos de luto: o luto ritual e o luto moral. O luto ritual é aquele obrigatório devido a realização de rituais à pessoa falecida. O luto moral é aquele em que a pessoa se sente obrigada ao luto devido uma condição moral, por exemplo: quando meu pai biológico faleceu eu fiz um luto de 7 dias não participando de nenhuma obrigação, apesar de meu pai não ser de religião e não ter nenhum vínculo com minha família religiosa. Este luto que cumpri foi moral, em memória de meu pai.

Já quando um irmão de santo faleceu, fizemos luto ritual por 32 dias como manda o fundamento de nossa gôa, e isso é independente de termos afinidade com ele ou não. De fato podemos até mesmo não gostar daquele irmão ou irmã falecido, mas o fundamento obriga ao luto.

Quando fico de luto?

Entramos de luto quando falecem ascendentes diretos como pai ou mãe de santo, avô ou avó, bisavô ou bisavó etc., descendentes e colaterais como filhos/as de santo e irmãos de santo. "Sobrinhos/as", "primos/as", netos e bisnetos de santo não nos obrigam ao luto ritualístico - exceto se participarmos do ritual de desligamento - mas o luto moral pode ser realizado.

Lembrando que sempre que um babá ou iyá entram de luto, seja ritual ou moral, todos seus filhos e demais descendentes também são obrigados a entrar de luto. Isso é determinado pela hierarquia. Um babá ou iyá não pode ficar com o quarto de santo aberto se seu próprio babá ou iyá está com ele fechado.

Quanto tempo dura o luto?

Varia muito o tempo de luto, pois depende do nível hierárquico da pessoa falecida e sua relação dentro da família religiosa. Mas todos são unânimes em entender que quem determina o tempo de luto - assim como o tempo de resguardo após uma obrigação - é o babalorixá ou iyalorixá da comunidade terreiro.

O tempo varia muito e não caberia aqui neste texto sem parecer uma "tabelinha", pois o tempo mínimo é sempre fixo e que pode variar de 7 à 32 dias ou mais em caso de falecimento de filhos/as de santo e irmãos de santo. Mas no caso de antecessores (pai, mãe, avô, avó, bisavô, bisavó de santo) este tempo será sempre de 1 ano onde são realizados rituais de liberação do antepassado que esperamos agora se tornar um ancestral. A isto também chamamos de "quebrar o luto".

A hierarquia deve ser observada sempre de cima para baixo, onde um filho ou filha de santo com casa aberta nunca deverá ter um tempo de luto menor que o de seu pai/mãe, avô/avó etc. O luto deve ser sempre igual ou maior, mas nunca menor. Lembro que nosso vínculo iniciático é como nosso pai ou mãe de santo e não com nossos avós, por isso, se um avô ou avó de santo cumpre um luto de 32 dias e nosso pai ou mãe de santo quer cumprir um luto de 3 meses, devemos seguir o período mais longo.

Durante o luto o que posso ou não posso fazer?

Existem dois períodos durante o luto que altera o que pode e o que não pode ser feito. Durante o período em que o quarto de santo fica fechado, não se pode fazer nada religioso. Após o quarto de santo ser reaberto o luto se torna mais flexível. Pode-se normalmente consultar búzios, arriar frentes, despachar Exu nas segundas-feiras, bater cabeça, beijar mãos, visitar o terreiro, ajudar na manutenção do terreiro, pagar mensalidades (quando há), verificar se suas quartinhas estão com água, realizar e participar de sessões de Umbanda, Quimbanda, mesa espírita, Jurema, Catimbó, ir na igreja, em casamentos, em festas brasileiras etc. Pode-se fazer também trabalhos, limpezas e lavação de cabeças. A liberação para o corte, seja para Orixás ou mesmo para o Povo da Rua (exus e pombagiras), dependerá da autorização do pai ou mãe de santo que instituiu o luto.

Mas se podemos tanta coisa, então o que não podemos? Não podemos comer arroz com galinha (este tabu permanece, mesmo durante o luto. Este prato só pode ser consumido quando em rituais aos Eguns e não por estarmos de luto), também não podemos participar, nem mesmo como visita, de obrigações e festas de Batuque ou Candomblé. Incluo o Candomblé aqui, porque também é uma tradição que cultua Orixás como divindades, então convém evitar visitas em casas de Candomblé. Não pode, também, haver a manifestação de Orixás em seus filhos durante o luto, nem mesmo sob a forma típica em rituais aos ancestrais. Caso um filho ou filha de santo deseje deixar a casa, suas obrigações não podem ser entregues até o fim do luto. Não se faz Osé, nem obrigações de Borí (com exceções pontuais como em casos de necessidade de saúde) e apronte (este é completamente proibido). Alabês de luto não podem tocar Batuque em outras casas, mas Umbanda e Quimbanda pode.

Concluindo

Bem, coloquei aqui tudo o que pude me lembrar. Certamente deve ter mais coisas ou ainda hajam diferenças conforme o lado ou gôa. Espero que tenha ajudado a esclarecer a maioria das dúvidas. Notem que não expus detalhes dos fundamentos, pois isto cabe tão somente aos babás e iyás em suas casas, pois devemos ter sempre em mente que:

Biri-biri bò wọn lójú. Ọ̀gbẹ̀ri nko mo Màrìwo
Trevas cobrem seus olhos. O não iniciado não pode conhecer o mistério do Màrìwò¹

Àṣẹ oo!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor de Ensino Religioso. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural). 

¹ SANTOS, Juana Elbein dos. Os nàgó e a morte: pàdé, àṣẹ̀ṣẹ̀ e o culto égún na Bahia. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 21


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