O CULTO À INFÂNCIA NOS TERREIROS

Por Hendrix Silveira*


Aproveitando o dia capitalista da criança quero fazer uma pequena reflexão sobre o culto à infância nas comunidades-terreiro gaúchas. Não um culto às crianças, pois isso não existe nessas tradições, mas um culto a representação da força infantil.

A própria existência de tal culto já nos garante a importância dessa força para as sociedades africanas e isso reverbera nas religiões "descendentes", se é que posso usar este termo. Me refiro aqui ao Batuque, à Umbanda e à Quimbanda.

No Batuque a força infantil é cultuada sob a forma dos Òrìṣà Ibéji, uma dupla de divindades crianças que, na África, por vezes são cultuadas como dois meninos ou um casalzinho, mas sempre são irmãos. No Batuque são cultuados como um casal, filhos de Ṣàngó e Ọ̀ṣun. Seus ìtán os revelam como divindades poderosas capazes até mesmo de vencer Ikú, a Morte. São poderosas na resolução de problemas e trazem saúde e felicidade a seus cultuadores.

O seu principal rito é a Mesa de Ibéji, liturgia que acontece, geralmente, no batuque de terminação de um Ilé, constituído principalmente de um serviço de alimentação ritualística das crianças da comunidade. A ideia de alimentação é, obviamente, a manutenção e garantia da continuidade da vida representada na própria criança.

Na Umbanda o culto à força infantil se dá por meio da linha chamada de Yori, Erê, Ibejada ou Cosminhos. Às vezes também é chamada de “Linha das Crianças”.

O termo Yori provém da Umbanda Esotérica, mas é largamente adotada por outras umbandas para designar esta linha de espíritos. O termo “Erê” vem do Candomblé; é uma expressão utilizada para categorizar um tipo de manifestação infantilizada que ocorre após a do Orixá. Já o termo “Ibejada” demonstra clara alusão aos orixás Ibéji. Por fim, o termo “Cosminhos”, típico aqui no Rio Grande do Sul, é uma referência aos santos católicos Cosme e Damião. No processo de hibridismo com as tradições de matriz africana os Orixás Ibéji foram associados aos santos gêmeos, e essa referência persistiu na Umbanda.

Nos Centros de Umbanda do Rio Grande do Sul a festa de “Cosmes” costuma ser uma sessão onde os espíritos de crianças desencarnadas incorporam nos médiuns que se portam como tais, fazendo bagunça e peraltices. Por vezes também há – e por influência do Batuque – uma liturgia de alimentação chamada aqui de Mesa de Inocentes onde são distribuídos gratuitamente doces e brinquedos para crianças. Como a Umbanda é norteada por alguns valores do espiritismo, como por exemplo a caridade, também é comum essa distribuição nas comunidades do entorno.

Já na Quimbanda o culto à força infantil se dá por meio das entidades Exu Mirim e Pombagira Menina. Como a Quimbanda surgiu com a ideia de ser o “negativo”, a “esquerda”, da Umbanda, à essas entidades são atribuídas uma teologia de crianças maldosas, terrivelmente traquinas, possivelmente criminosas (pivetes) e libidinosas quando vivas, em suma, crianças que tiveram a sua infância roubada devido a questões sociais. O extremo oposto das “inocentes” da Umbanda. Não há um rito específico no sentido atribuído ao Batuque e à Umbanda para elas devido ao caráter um tanto sombrio que a própria Quimbanda se propõe. Também diferente da Umbanda, na Quimbanda não há uma “Linha das Crianças” e o Exu Mirim e a Pombagira Menina são entidades cultuadas dentro dos Reinos da Quimbanda e são diretamente vinculados aos seus médiuns como “frenteiros” (entidades guardiãs) ou “de fundo” (entidades auxiliadoras). Ainda pretendo fazer uma análise teológica mais profunda sobre estas fascinantes entidades.

Àṣẹ oo!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor de Ensino Religioso. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor dos livros Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS e Afroteologia: construindo uma teologia das tradições de matriz africana, ambos pela editora Arole Cultural. Acesse meu Link Tree.

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