Quando começou a Umbanda? Antes de Zélio… e também com Zélio.
A pergunta sobre o início da Umbanda costuma surgir como se existissem apenas duas respostas possíveis: ou ela nasce com Zélio Fernandino de Moraes, em 1908, ou ela já existia muito antes disso, na longa história das práticas afro-indígenas de cura, transe e relação com o sagrado. Para mim, essas narrativas não são dicotômicas, mas complementares. Uma fala da antiguidade da força; a outra fala da criação de uma forma religiosa organizada.
A própria palavra “umbanda” nos leva para tempos que antecedem qualquer data do século XX. Estudos etimológicos mostram que o termo é de origem banto, sobretudo do quimbundo, com sentidos ligados à arte de curar e à ação do sacerdote curador. Em vez de designar uma religião, “umbanda” nomeava uma prática, um ofício, um conjunto de saberes rituais. Essa semântica banto atravessou o Atlântico, aparecendo na documentação colonial associada aos calundus, cultos de cura conduzidos por sacerdotes africanos que trabalhavam com folhas, água, objetos simbólicos, cantos e língua de Angola.
Dentro dessa história mais antiga, surgem figuras que a bibliografia reconhece como precursores do que mais tarde seria identificado como universo umbandista. Domingos Umbata, por exemplo, um sacerdote angolano atuando na Bahia em 1646, é descrito nos processos inquisitoriais como alguém que conduzia rituais noturnos com água, folhas e instrumentos ritualizados, em plena continuidade com práticas centro-africanas. Séculos depois, outra personagem marcante aparece: Luíza Pinta, africana angolana instalada em Minas Gerais no século XVIII, que liderava calundus frequentados por negros e brancos, e cuja centralidade nas práticas de cura e transe a coloca como ponto de referência para tradições que, muito mais tarde, dialogariam com a cabula, com a macumba e com formas embrionárias da Umbanda.
No início do século XX, antes mesmo do episódio célebre de 1908, encontramos ainda João de Camargo, ex-escravizado que se tornou líder religioso em Sorocaba. Sua Capela do Senhor do Bonfim se tornou um polo de devoção popular que unia catolicismo, cura mediúnica, respeito aos mortos, cantos, rezas e práticas de matriz africana. Ele não se dizia umbandista, nem usava esse rótulo, mas a religiosidade que articulava — negra, popular, mediúnica, centrada em caboclos e pretos velhos — pertence à mesma constelação espiritual que vai dar nome à Umbanda.
Tudo isso mostra que havia uma longa história de organização espiritual antes de Zélio. Havia cultos, rituais, lideranças, métodos, permanências banto e iorubanas, práticas de cura e comunicação com ancestrais. Havia uma lógica própria de organização, mesmo sem instituições formais, estatutos ou doutrinas escritas. E também havia algo importante: no Brasil do século XX, o termo “umbanda” começa a ser usado de maneira muito ampla para designar qualquer prática de cura mediúnica, o que inclui inclusive figuras como Zé Arigó, chamado de “umbandista” por muitos apesar de se declarar católico e, mais tarde, vinculado ao espiritismo. Isso mostra que “umbanda” era, para boa parte da população, nome de um modo de atuar com espíritos, não de uma religião estruturada.
É nesse ponto que entra Zélio Fernandino de Moraes. Quando o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifesta em 1908, não está negando nada do que veio antes. Ao contrário: está dialogando com um imaginário já estabelecido — o dos caboclos, dos pretos velhos, das curas, da caridade, da comunicação com mortos e ancestrais. O que é novo em Zélio não é a prática mediúnica, nem o incorporação, nem o trabalho com guias. O que é novo é a sistematização. Pela primeira vez, o termo “Umbanda” é assumido como nome de uma religião, com discurso próprio, terminologia definida, princípios claros, instituições reconhecíveis e um projeto de presença pública.
Essa transição se torna ainda mais evidente quando observamos o papel dos Congressos Nacionais de Umbanda, especialmente o primeiro, em 1941. Ali, setores da recém organizada Umbanda urbana buscavam construir uma narrativa oficial de origem que pudesse dialogar com expectativas esotéricas e com o gosto da classe média branca. Não é por acaso que naquele congresso se tentou promover a ideia de que a Umbanda teria nascido na antiga Índia, no Egito ou até nos continentes míticos de Atlântida e Lemúria. Essa operação discursiva, ao afastar deliberadamente a centralidade africana e banto da religião, pretendia apresentar a Umbanda como herdeira de uma tradição espiritual “universal”, desvinculada de sua matriz negra. Nesse mesmo movimento, o papel histórico de Zélio — que havia sistematizado a religião e dado nome ao que antes era experiência dispersa — foi discretamente colocado de lado. Ele não foi exaltado, nem colocado na posição simbólica que lhe caberia; ao contrário, certas lideranças preferiram minimizá-lo, reforçando uma narrativa esotérica que legitimasse uma Umbanda mais “branqueada” e afinada com modismos espiritualistas da época. Isso revela que a institucionalização da Umbanda foi também um campo de disputa: disputava-se a memória, a origem e o tipo de corpo que teria legitimidade para contar essa história.
Ainda assim, apesar dessas tensões internas, é inegável que a Umbanda organizada que conhecemos hoje se estrutura a partir da virada que Zélio inaugura. A partir das primeiras Tendências, surge uma linguagem religiosa que pretende organizar e explicar aquilo que antes era vivido sobretudo pela experiência cotidiana. Ele não apenas incorpora um caboclo, mas define a moldura para essa incorporação: linhas de trabalho, falanges, ética caritativa, pontos riscados, cânticos, relação com o espiritismo kardecista e com o catolicismo popular, e um modelo institucional que mais tarde resultaria em federações, escolas e congressos. Esse passo representa um salto qualitativo: se havia Umbanda enquanto força e prática antes dele, é com Zélio que surge a Umbanda enquanto religião.
Por isso, dizer que “a Umbanda foi fundada por Zélio” não nega sua ancestralidade africana, banto e indígena. É apenas reconhecer o marco da sua institucionalização. Da mesma forma, dizer que a Umbanda existia antes de Zélio não significa rejeitar a importância histórica do Caboclo das Sete Encruzilhadas, que deu forma ao que antes vivia disperso. As duas narrativas, longe de serem adversárias, são complementares: a força é antiga; a forma é moderna. A raiz é ancestral; o tronco que conhecemos hoje brota no início do século XX.
E, para mim, é nesse encontro, entre a profundidade da história negra e indígena do Brasil e a capacidade de Zélio de organizar uma doutrina, que encontramos a beleza complexa da Umbanda. Uma religião que nasce do povo, das encruzilhadas, da mata e da cidade, e que se assume como tal a partir do momento em que um caboclo decide nomeá-la diante do mundo.
Para seguir pesquisando
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WIKIPÉDIA. Umbanda. Entrada com síntese histórica, etimologia e discussão sobre Zélio e a Umbanda Branca.
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COSTA, Valdeli Carvalho da. Umbanda: os seres superiores e os orixás/santos. v. 1 e 2. São Paulo: Loyola, 1983. (Coleção fé e realidade)
MOTT, Luiz. Feiticeiros de Angola na Inquisição Portuguesa. Mneme, 2011. Portal de Periódicos UFRN
SÁ JUNIOR, Mario Teixeira de. A invenção da alva nação umbandista: a relação entre a produção historiográfica brasileira e a sua influência na produção dos intelectuais da Umbanda (1840–1960). 2004. 107 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, Dourados, 2004. PPGH/UFGD
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SILVA, Vanda Aparecida da. “Da capela do Senhor do Bonfim de João de Camargo…” Identidade (Faculdades EST), 2021. Revistas EST+1
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Textos populares e acadêmicos sobre Luíza Pinta e os calundus como antecedentes da cabula e da macumba, discutindo seus vínculos com a formação posterior da Umbanda. Candomblé+1

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