LÓRÒGUN - RITO DE GUERRA

Por Hendrix Silveira*

O modo de produção econômico principal entre os povos da África Pré-Colonial era a agricultura. A produção excedente era comercializada em grandes mercados. Mas a agricultura é uma atividade muito frágil: o tempo (incontrolável) e a mão-de-obra são fatores determinantes para a economia de uma região. Por isso muitos povos, na ansiedade de garantir uma subsistência durante o ano todo, travavam conflitos com a intenção de dominar regiões e assim cobrar tributos desses reinos. Com os iorubás não era diferente.

Existe ainda hoje um grande reino iorubá, no estado de Oxum, chamado Ijexá, origem da nossa Nação gaúcha. Este reino possui sua capital na cidade de Ilexá, onde cultua-se o Orixá Obokun que, embora sendo um Orixá da criação (Oxalá), é um guerreiro poderoso, tão importante na região que dá título ao rei (Obá Obokun).

Os Ijexás são um povo extremamente guerreiro. Travaram muitas guerras contra outras etnias iorubás para a manutenção dos seus domínios. E é aqui que entra a questão religiosa.

Para povos cuja cultura é impregnada de valores religiosos, como os iorubás, todas as instâncias da vida são sagradas, inclusive a guerra. É comum para muitos povos que, em tempos de paz, sejam realizados rituais (cantos, danças, beberagens, festins) de guerra. Na teologia desses povos não são apenas as pessoas que vão para a guerra, mas também suas divindades, os Orixás, e é aí que surge esse rito chamado de Lórògun (Rito de Guerra, em iorubá), ou como chamamos no Batuque “Mandar os Santos (ou Orixás) para a Guerra”.

Esse ritual consiste em três partes: a ida dos Orixás à guerra, o período de abstinência e o retorno dos Orixás. Na primeira parte, à noite, é realizado um ritual onde os Orixás guerreiros se manifestam em seus elegun. Em seguida, o quarto dos Orixás é fechado e ficará assim até o sábado pela manhã. 

Inicia-se então a segunda parte da liturgia onde devemos nos abster de bebidas alcoólicas ou revitalizantes, carnes, sexo (diz-se popularmente que um filho concebido neste período poderia nascer com espírito brigão), qualquer coisa que nos agite, pois podem se transformar em conflitos com consequências trágicas. Simbolicamente, este período de abstinência serve para nos lembrar dos períodos de guerra onde a comida é escassa e a saúde mental está comprometida. As guerras aqui são entendidas como algo ruim, que nos tira de nossas rotinas diárias e, sobretudo, é um período em que estamos sem a assistência dos Orixás (que estão na guerra) e por isso estamos desprotegidos. Outra lembrança que este ritual provoca é o do período da escravidão dos povos africanos, pois frequentemente conflitos resultavam na escravização dos perdedores, seja internamente (na relação entre os diferentes reinos) ou externamente (sob o jugo dos europeus). Neste sentido, este ritual se assemelha simbolicamente ao Pessach judaico, cuja prática representa o período em que os judeus estavam escravizados no Egito.

A terceira parte é o retorno dos Orixás para casa, ritual realizado na parte da manhã do sábado, é uma grande festa de recepção onde todos os Orixás se manifestam. O sentimento é de alegria pelo seu retorno, o que também simboliza o retorno à normalidade, à nossa rotina, sob a proteção dos Orixás.

Na transposição dessa cultura ao Brasil, na época da escravidão, todos os rituais africanos tiveram que ser adaptados ao calendário católico. Assim, esse ritual é realizado na semana santa, com a primeira etapa na quarta-feira, a segunda na quinta e sexta-feira, e a terceira no sábado pela manhã.

Por causa da adaptação ao calendário litúrgico católico, muitas pessoas que desconhecem a história e os propósitos desse ritual, usaram a ideologia cristã para explicá-lo, mas como podemos ver esse ritual é tipicamente africano, faz parte das nossas raízes mais remotas e devemos realizá-lo com muito respeito e reverência.

Axé o!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).

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REFERÊNCIAS

ADÉKỌ̀YÀ, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: tradição oral e história. Terceira Imagem: São Paulo, 1999.
AMIN, Samir. O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do capitalismo periférico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976. 334 p.
OGEDENGBE: the legendary african warrior. Disponível em <http://www.ogedengbe.com>. Acesso em 03/04/12.
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NOTAS

a) Este texto foi originalmente publicado no jornal Grande Axé, edição 09, setembro de 2011, pág. 17, e atualizado em 03/04/2023, neste blog.

b) Muitas tradições religiosas promovem um jejum em certos períodos do ano. O Hinduísmo, o Jainismo, o Budismo, o Judaísmo, o Islamismo, o Cristianismo, a Fé Bahá'í, entre outras, são tradições que possuem períodos ou práticas de jejum. Essa prática não é apenas uma representação simbólica dos períodos de perdas, guerras, escravidão e fome. Em alguns casos também são símbolos de submissão ao Transcendente de cada fé. No caso das Tradições de Matriz Africana, o jejum talvez seja impensado devido a insegurança alimentar em que vive o povo negro em nosso país. Historicamente sendo relegado ao subdesenvolvimento e à fome, promover jejum, mesmo que religioso, nos parece um tanto cruel. No entanto, outros povos que possuem a cultura do jejum não estão isentos da pobreza em seus países. Geralmente, nestas culturas, o jejum é indicado, mas não obrigatório. Cientificamente já foi comprovado os benefícios do jejum para a saúde humana no geral.

c) Foto de Orisarayibi Ogedengbe Agbogungboro I, Chefe guerreiro dos Ijexás e fundador da dinastia Ogedengbe de Ileshá em seu uniforme de guerra.

Comentários

...adorei! muito esclarecedor! esse ritual é realizado na casa a qual pertenço, mas apesar de achar um ritual importante a partir de agora entendo o real fundamento desse ritual, o que pra mim é importantíssimo. Pena não ter um link para compartilhar nas redes sociais...
Olá Mari. Já coloquei os botões de compartilhamento em redes sociais. Fique a vontade para compartilhar. Axé

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