Entendendo algumas questões de gênero nas Tradições de Matriz Africana

A sociedade ocidental é constituída sobre quatro pilares ideológico-culturais: a heteronormatividade, o racismo, o cristianocentrismo e o machismo. O machismo é a ideologia que sustenta que o homem é superior à mulher, logo merece as melhores posições, melhores salários, etc. Quando este sentimento de superioridade é exagerado, ou seja, quando há um total desprezo pelas mulheres e seu universo, estamos falando de misoginia.

Ser um "pilar ideológico-cultural" significa que a cultura de uma sociedade está arraigada destes valores, por isso dizemos que a cultura ocidental é machista, logo devemos rever estes aspectos culturais, pois a cultura não é engessada, ela pode ser remodelada - e de fato o é - de tempos em tempos. Para Braudel a cultura é "tempo longo", o que indica que suas perspectivas são mais duradouras e difíceis de serem revistas e reconstruídas, por isso Deleuze nos incita a "desconstruir" a cultura para reconstruí-la de forma a contemplar as hodiernas visões de mundo.

Para as Tradições de Matriz Africana como o Batuque e o Candomblé as questões de gênero nunca se colocaram como fator decisivo nas relações de poder dentro da comunidade tradicional. Ali homens e mulheres têm funções diferentes porque o trabalho é teológico, assim como a própria diferença de gênero o é.

Para as tradições africanas absolutamente tudo é sagrado. Inclusive o trabalho. Logo o trabalho se constitui numa "economia teologal", parafraseando Dussel. Um dos elementos de compreensão da humanidade a partir do sagrado é a questão do trabalho dentro das questões de gênero.

O falo é o símbolo representativo do poder sagrado masculino, enquanto que o útero é o símbolo do poder sagrado feminino. Assim todos os elementos com formato fálico (tais como a faca, a espada, a lança, o tambor, etc.) são sub-representações do falo, logo pertencem ao homem, pois potencializam e são potencializados por ele. Por isso as atividades masculinas estarem mais voltadas para a guerra, a caça, a pesca, etc.

Por outro lado o símbolo representativo do poder sagrado feminino é o útero, por isso o trabalho feminino é aquele em que o seu poder gerador de vida pode ser direcionado, como no plantio e no preparo dos alimentos. A visão machista de mundo diz que o lugar da mulher é na cozinha porque no mundo ocidental o lugar mais importante é a sala, onde o homem lê seu jornal, assiste seus programas de TV ou se reúne com os amigos. A cozinha é sempre um local de labuta (e a cosmovisão ocidental
é de que o trabalho é castigo divino), um lugar inferior onde as pessoas inferiores (mulheres) devem estar e se dedicar.

Ao contrário, para as sociedades africanas a cozinha é o local principal da casa. A panela tem o formato uterino e é nela que a mulher exercerá o seu poder gerador de vida na transformação do alimento cru em cozido para assim garantir a vida de sua família.

Como a mulher é um ser inferior para a sociedade ocidental, é desprezada e a instituição da monogamia é para evitar que o homem (o ser superior) tenha contato com muitas delas. Já na cosmovisão africana a mulher é sagrada, por isso a poligamia garante que o homem esteja rodeado de sacralidade.

Entrementes, para a sociedade africana a mulher não é superior, mas possui equidade com o homem em direitos e deveres. As diferenças de função estão relacionadas exclusivamente a visão de sagrado que se tem sobre o papel de homens e de mulheres no mundo visando sempre a complementaridade, simbiose e a continuidade da vida que é o fator primordial da filosofia e da teologia africana.

Àṣ o!

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