AFROTEOLOGIA DA KIMBANDA

Por Hendrix Silveira*


Este é um dos temas que penso há séculos (kkkk), mas que nunca expus ou me debrucei. Este período de luto anual pelo qual minha família religiosa está passando tem me (re)aproximado das festas exubandeiras o que tem proporcionado muitas reflexões a respeito de uma teologia que contemple esta falange espiritual.

Era comum se dizer nos anos 1990 quando me iniciei na Umbanda de minha avó, Mãe Marute de Oxum, que os exus e pombagiras eram espíritos com carmas a resgatar; espíritos trevosos; espíritos iluminados; enfim, uma série de definições que tentavam explicar a sua existência e porque se comportavam de maneira "mundana" ao invés da altivez moral que Kardec sempre apregoou.

A ideia de que são espíritos com carmas a resgatar de vidas passadas não faz qualquer sentido para mim. A menos que se deixe de acreditar em reencarnação, pois os estudiosos do espiritismo afirmam que é na reencarnação que acontece o resgate cármico, o pagamento de dívidas morais acumuladas em vidas anteriores. Então, se fosse essa a questão, bastaria a reencarnação e não a vinda como falangeiros de Exu.

Espíritos trevosos ou sem luz também não faz sentido, pois seriam como obsessores se apoderando de nossos corpos, não seriam doutrináveis e não estariam sujeitos ao desenvolvimento mediúnico ou a rituais apropriados.

Espíritos iluminados segue a premissa de que não possuem luz própria, como os espíritos de luz, mas que dependem da luz de outras entidades para atuarem na Terra. Isto faz sentido pra mim que sempre entendi que o povo de exu está vinculado hierarquicamente a uma entidade da Umbanda, até mesmo demonstrando isso no ponto riscado - nem sei se ainda fazem isso de exu e pombagira riscar ponto. Contudo, por que haveria essa categoria de entidades se o que é apregoado é a tal "evolução" que se dá na reencarnação?

A resposta que sempre tive das minhas entidades é que cada entidade atua num plano diferente, numa diferente dimensão da realidade humana, portanto têm papeis diferentes e se comportam de acordo com esses papeis a cumprir.

Ao estudar a origem da Umbanda, me deparo com a frase do Caboclo das Sete Encruzilhadas de Zélio Fernandino de Morais dizendo que "a morte é o grande nivelador universal". Alguns talvez entendam que ele esteja se referindo às questões humanas relacionadas às diferenças de classe social, raça, gênero, sexualidade ou idade, mas ele diz isso aos membros da mesa espírita que repeliam os espíritos de Pretos Velhos, Erês e Indígenas  alegando serem eles atrasados, involuídos. O Caboclo os critica denunciando seu racismo religioso e seu discurso de que somente os médicos brancos eram os espíritos evoluídos.

Logo entendi, isso lá nos anos 1990, que os exus e pombagiras não são espíritos trevosos, iluminados, ou que estão em busca de resgate cármico, mas sim que estão no mesmo nível que outras entidades espirituais como Caboclos e Pretos Velhos, mas que atuam numa vibração diferente porque possuem um propósito divino que age na dimensão material de nossa existência.

Eles se portam como nós, riem e se divertem conosco porque já viveram o que vivemos, já sofreram o que sofremos, já foram enganados, traídos, conheceram os prazeres da carne, do jogo, do consumo, tiveram anseios e frustrações. São muito parecidos conosco em tudo, mas sem os freios morais cristianocêntricos, então estão nessa missão divina de nos proporcionar a resiliência que precisamos para alcançar nossos objetivos aqui mesmo na Terra, nesta existência.

Axé o!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).

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