PÓS-VIDA NAS TRADIÇÕES DE MATRIZ AFRICANA

Por Hendrix Silveira*


Numa postagem despretensiosa que fiz no Facebook questionei algumas falas que o povo de terreiro costuma dizer em momento de luto. Ocorre que existe o que chamei de Ancestralogia que é a parte da Afroteologia que estuda o pós-vida em nossa tradição. Ela se equivale à soteriologia cristã e está vinculada à escatologia, ou o nosso destino último.

O motivador dessa postagem é o fato de nosso povo ter falas equivocadas por puro desconhecimento sobre o que acontece conosco após a morte. na postagem do Facebook digo quais são essas frases, mas não as explico e suscitado pelos leitores resolvi explicá-las então.

a) Chamar pessoas não iniciadas de ancestral apenas porque faleceram - É muito comum em falas políticas, sobretudo dos movimentos negros, usarem a palavra "ancestral" para se referir aos grandes guerreiros da luta antirracista. Os estudos sobre a cosmopercepção africana na filosofia afrocentrada ou afrorreferenciada acabam por gerar a compreensão errônea de que basta ser preto para se tornar um ancestral. Mas isto está longe de ser uma verdade. Para as tradições de matriz africana existe uma pré-condição para a ancestralização que é a pertença a uma das tradições de matriz africana. É necessário ter assentamento de Bori e ter sido realizado um ritual funerário como o Arisun do Batuque ou Axexê de Candomblé. Se o indivíduo não passa por isso não pode ser chamado de ancestral. É um antepassado, um herói de nossas lutas, mas não um ancestral. O mesmo ocorre com quem não foi realizado o ritual fúnebre, mesmo sendo da tradição e tendo assentamento de Bori. Sem o ritual que desligue o que foi ligado pelo Bori, não há ancestralização.

b) Dizer frases do tipo: "que o Orixá 'tal' te receba de braços abertos no Orun" - Estudei muito sobre os Nove Espaços de Orun e nenhum deles está definido como o espaço em que vivem os Orixás. A ideia de se encontrar com os Orixás após a morte me parece vir da noção católica de se encontrar com Deus e os santos no Paraíso, ou como no Espiritismo onde nos encontraríamos com nossos mentores espirituais. Mas a escatologia yorubá, pelo menos, parece se aproximar da de outros povos como  do Egito Antigo, da Grécia Antiga e dos antigos povos nórdicos. Nestas religiões há um mundo dos mortos e outro onde vivem os deuses e eles nunca se cruzam, assim como na escatologia yorubá. Aúnica divindade que veremos realmente será Iansã, pois ela tem o papel de levar as almas dos mortos para o Orun.

c) Acreditar em reencarnação, carma etc. - Para as tradições de matriz africana não existe reencarnação. O Atunwá tem a ver com renascimento, pois não é a mesma consciência retornando para um corpo novo, mas sim o sopro divino, o Emi, sem consciência, que retorna. A consciência, ou seja, a própria identidade individual da pessoa se torna Egun, que é cultuado como ancestral, e nunca retorna a vida na Terra.

d) Não tirar a "mão de pessoa falecida da cabeça"  porque era uma boa mão enquanto viva - Quando uma pessoa iniciada em nossa tradição falece, todos os laços que ela criou precisam ser desfeitos para que ela se desligue do mundo material e possa ir para o mundo espiritual. Por isso objetos são quebrados, roupas são rasgadas e fios de contas são arrebentados. da mesma forma, se essa pessoa foi um/a sacerdote/sacerdotisa, tudo o que tocou, mas deve permanecer no mundo dos vivos, precisa ser passar por um ritual de desligamento. Isso inclui os Orixás que ela fez (que precisam comer por uma nova "mão") e as cabeças em que pôs sua mão (que precisam ser lavadas).

De forma alguma aqui pretendo desrespeitar os posicionamentos e entendimentos das pessoas, mas como babalorixá e afroteólogo, é meu papel lançar luz sobre dúvidas e equívocos. Não pretendo que esta seja a palavra final ou absoluta sobre a questão, mas estas são as considerações que faço a partir de meus estudos e reflexões.

Axé o!


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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor do livro Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS (editora Arole Cultural).

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