PEQUENA REFLEXÃO AFROTEOLÓGICA SOBRE O FOGO

Por Hendrix Silveira*

Há pouco tempo um membro da diretoria de uma escola da região metropolitana acendeu uma vela aromática em sua sala, mas racistas religiosos logo espalharam a notícia de que esta pessoa estaria fazendo uma "macumba" com intenções não muito boas. Este episódio flagrante de racismo religioso me provocou a escrever estas linhas.

Muito antes das tradições de matriz africana se utilizarem de velas em seus ritos religiosos, ela era um utensílio que iluminava as casas e templos romanos há mais de 2500 anos. A vela tem relação íntima com o fogo, um dos quatro elementos da natureza.

Já disse em outra publicação sobre a água (leia aqui) que as tradições de matriz africana tem uma relação estreita com as forças da natureza e que as divindades africanas regulam e fortalecem com o seu poder toda a Criação, por meio dessas forças. Seguindo ainda a afroteologia de Juana Elbein dos Santos em sua principal obra Os nagô e a morte (2002), entendemos que os Orixás vivificam o cosmo por meio de sua matéria simbólica: os quatro elementos - água, fogo, terra e ar.

É difícil definir o que é o fogo. Mas gosto da forma como a Wickipédia o define: "é uma mistura de gases a altas temperaturas, formada em reação exotérmica de oxidação, que emite radiação eletromagnética nas faixas do infravermelho e visível." Ou seja, uma chama é um mini Sol, uma mini estrela que libera luz e calor.

Esta propriedade do fogo como emissor de luz e calor se tornou importante para a humanidade em seus primórdios. Há dois milhões de anos nossa espécie nem existia, mas nossos antepassados, os homo erectus, já tinham pleno domínio do fogo. Nós herdamos esse domínio quando surgimos há 300 mil anos e ele foi muito importante para iluminar a noite escura, nos proteger de predadores, aquecer, cozinhar, enfim, foi a primeira forma de energia que utilizamos.

Mesmo depois de conhecermos o segredo da produção de fogo, ele nunca teve sua importância diminuída nas civilizações que se formaram. De fato, seu papel foi ressignificado pelas religiões. Quando um relâmpago toca uma árvore, ela se incendeia. Este acontecimento gerou a noção de que o fogo é promovido por um ser divino, o que faz dele uma centelha da própria divindade.

Por fazer parte da divindade, também é a representação física dela, por isso muitas religiões ou veneram o fogo ou o tem como símbolo de seu sagrado, de seu transcendente. As tradições de matriz africana utilizam muito o fogo de várias formas e o uso de velas é onipresente. No caso do Batuque do Rio Grande do Sul, é muito comum ter uma vela acesa no quarto de Orixá, local onde ficam os altares dos Orixás. Também é comum o uso de velas junto a oferendas dispostas em locais públicos como encruzilhadas, praias e pedreiras. O poder da vela é o de iluminar os caminhos daqueles a quem a oferenda é intencionada. Também serve para afastar espíritos trevosos, ajoguns, obsessores, forças obscuras e seres sobrenaturais malévolos.

Outras religiões também utilizam a vela. No judaísmo, o menorá tem papel importante em suas festas e no interior das sinagogas, no altar, há sempre um candelabro com uma luz vermelha que fica permanentemente acesa que representa a presença de Yaweh no templo. No passado era uma chama que ficava ali sendo alimentada constantemente para que nunca apagasse. No zoroastrismo o fogo é tão importante que os espaços sagrados dessa religião são chamados de Templo do Fogo onde fica uma pira no centro da sala principal onde a chama é constantemente alimentada.

A vela com uma chama na ponta é claramente um símbolo fálico. O fogo também é lembrado quando do calor que nossos corpos emitem ao experimentarem a tensão sexual. Explico bem sobre isso em meu livro sobre este simbolismo nos rituais do Batuque. Então me parece natural que alguns Orixás masculinos tenham o fogo como referência. Exu, divindade fálica, sexualizada, despudorada; e Xangô, sexualizado também, mas que usa o fogo muitas vezes para punir os mentirosos. Por ser fogo, Xangô odeia a morte, valorizando a vida.

Fogo é vida.

Àṣẹ oo!

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* Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà da Comunidade Tradicional de Terreiro Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre. Doutor e Mestre em Teologia. Especialista em Ciências da Religião e em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em História. Assessor Técnico do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Professor de Ensino Religioso. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade (EST). Autor dos livros Não Somos Filhos sem Pais: história e teologia do Batuque do RS e Afroteologia: construindo uma teologia das tradições de matriz africana, ambos pela editora Arole Cultural. Acesse meu Link Tree.

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